Por Caio César | 04/06/2023 | 6 min.
“Todo mundo quer poder morar numa casa, ou num bairro que tenha uma verticalização não tão grande”, assim começa a fala de Paula Santoro, uma das representantes da intelectualidade da Universidade de São Paulo (USP).
A construção de prédios em vez de casas vai desconfigurar bairros, destruir quadras e, por consequência, modos de vida. O alerta é da coordenadora do LabCidade, @paulafsantoro. Em entrevista na @CBNoficial , Paula detalhou os efeitos nefastos do PL da revisão do Plano Diretor. pic.twitter.com/YZk1EHctjG
— LabCidade (@LabcidadeFAUUSP) June 2, 2023
Santoro justifica que a verticalização, supostamente descontrolada e assustadora, atingiu “anéis intermediários” da cidade de São Paulo, prejudicando “modos de vida”. Sua posição é bastante clara: a revisão do Plano Diretor Estratégico não pode ampliar a verticalização, sob pena de transformar o tecido de forma radical, irreversível e indesejável.
Ora, a argumentação não poderia ser mais lamentável, nem menos didática. O Plano Diretor Estratégico (PDE) da prefeitura comandada por Fernando Haddad (PT) foi, na realidade, bastante tímido em relação à verticalização. Ainda que consideremos que o PDE foi realizado sob a diretriz de um desenvolvimento orientado ao transporte (DOT ou, no original em inglês, TOD, Transport Oriented Development), seu tratamento dos eixos foi claramente comedido, justamente para minimizar a oposição prédiofóbica.
Estamos diante de uma defesa de privilégios de alguns poucos indivíduos, que se dá em detrimento da sustentabilidade e racionalidade do tecido urbano, não só da capital, mas de toda a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que é influenciada e impactada pelas disputas da elite paulistana. Esta defesa, infelizmente, arrasta uma grande montanha de contradições, carregando ainda alianças com associações de bairro abertamente reacionárias.
Os modos de vida em questão envolvem o repúdio a franquias, a romantização de imóveis de baixo gabarito (especialmente casas térreas e sobrados) e preocupações excessivas com a fluidez dos automóveis. Mais uma vez, ideais tipicamente suburbanos estão contaminando a discussão, corroendo qualquer tipo de solidariedade com nossas periferias inchadas e submetidas a longos deslocamentos.
Também à CBN, Nabil Bonduki, outro notável nome da USP, com ligações ainda mais profundas com o processo de elaboração do atual plano diretor, defendeu que o aumento da verticalização exige uma nova bateria de audiências públicas, além de estudos técnicos. Interessante, não é mesmo? Ora, quais teriam sido os estudos técnicos que sustentaram os parâmetros do atual plano? Por quais motivos faz sentido a manutenção de um gabarito de 8 pavimentos na maior parte da cidade, ao passo que as zonas dos eixos de transformação, no entorno de estações do sistema metroferroviário, e ao longo de corredores de ônibus, ficam restritas a menos de 1 km? O discurso está alinhado com o de Helena Degreas, colunista da emissora golpista Jovem Pan e integrante da reacionária associação Pro-Pinheiros.
Nos Estados Unidos da América (EUA), é muito comum encontrar vilas e vilarejos que restringem ferozmente o tipo de construção e de atividade comercial que pode ser realizada. A região de Nova Iorque, integrante da Megalópole Boston-Washington (BosWaah), apresenta múltiplas configurações espaciais orientadas a partir da dualidade entre ferrovia e automóvel, combinando, normalmente, casas de aproximadamente cem anos de idade e edifícios de uso misto com, no máximo 4 ou 6 pavimentos, 8, se muito. Estas podem ser encontradas em uma série de condados:
- Estado de Nova Iorque: Westchester, Putnam, Rockland;
- Estado de Nova Jérsei: Essex, Somerset, Camden;
- Estado de Connecticut: Fairfield, New Haven;
- Estado da Pensilvânia: Delaware.
A diferença é que a oferta de transporte público nos subúrbios ferroviários, cuja origem normalmente pré-data a Segunda Guerra Mundial, costuma ser bastante limitada — ao menos, bastante limitada em comparação com a Região Metropolitana de São Paulo. Os sistemas ferroviários são desenhados para que todos viajem sentados, com 2 ou 3 trens/hora/sentido no horário de pico e 1 ou 2 trens/hora /sentido partindo no horário de vale — frequência que pode ser ainda menor, dependendo da região. Linhas de ônibus com intervalo médio abaixo de 10 ou 20 minutos são raras. A morfologia suburbana da principal metrópole da costa leste também é flagrantemente racista, mas não farei nenhuma ilação sobre um white flight às avessas, no caso de São Paulo.
Sabemos que o transporte público da região metropolitana apresenta superlotação e sinais de saturação, no entanto, parte significativa do problema decorre da proteção a bairros centrais. É extremamente difícil oferecer capacidade para atender uma extensa periferia, não raramente com densidades que podem ultrapassar aquela de bairros de interesse no Centro Expandido.
Podemos admitir, portanto, a existência de uma polarização entre um Centro Expandido denso em empregos, mas rarefeito em habitantes, enquanto a periferia é densa em habitantes, mas rarefeita em empregos. Convenientemente, o discurso de Santoro ignora, por exemplo, grandes complexos habitacionais, públicos e privados, que foram erguidos nas franjas: Cohab Cidade Tiradentes, Cohab I e II, Cohab Teotônio Vilela, entre outros, não surgiram com o último Plano Diretor Estratégico.
Considerando nosso apreço por uma exclusividade autofágica, pode ser absolutamente verdade que grandes parcelas da periferia não pretendem abrir mão de um ou mais modos de vida baseados em carro popular e sobrado autoconstruído, ou mesmo que percebam que morar numa área de menor densidade, mas localizada em algum bairro central, seja sinônimo de uma vida bem-sucedida. Tais percepções não deveriam validar políticas públicas com efeitos deletérios.
O planejador, independente de sua formação, contudo, não pode se arvorar apenas em desejos insustentáveis. À USP, tem faltado vanguarda e coragem, tanto para desafiar o senso comum, quanto para desafiar posições privilegiadas que se alimentam e reforçam a desigualdade socioespacial. Questões arquitetônicas e urbanísticas ligadas à verticalização produzida pelo mercado não podem assumir um tom genérico.
Não é possível sustentar uma cidade que busca uma morfologia baseada em verticalização moderada ou baixa, principalmente em suas áreas mais centrais e ao longo de eixos de transporte público de alta capacidade, que demandaram séculos e muitos bilhões de dólares para se tornarem realidade.
São Paulo precisa de um choque de oferta de unidades habitacionais, antes que o choque da escassez, defendido por urbanistas que não nasceram, não viveram e não viverão nas periferias, torne a vida da maioria ainda mais difícil.
Finalmente, fica aqui o apelo: se você não tolera verticalização, saia de São Paulo ou abrace nossas periferias. Nós precisamos de trens de passageiros, tanto na forma de um metrô regional para o conjunto de regiões metropolitanas paulistas (Macrometrópole Paulista), quanto na forma de outros sistemas, como trens regionais verdadeiramente competitivos, utilizando ferrovias de alta velocidade — como já escrevemos no passado, trens de levitação magnética podem permitir a utilização do leito de rodovias, facilitando a construção de uma malha de trens regionais em poucos anos.
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