Menos Centro Expandido, mais periferia expandida

Por Caio César | 02/07/2023 | 4 min.

Legenda: Região do Jardim Piatã A, em Mogi das Cruzes, observada por meio do Google Earth
Jardins? Menos Jardim Paulista e Jardim Europa, mais Jardim Alegria e Jardim Piatã A

Discutir legislações áridas e complexas, como são aquelas que regulam a vida e a circulação de pessoas e mercadorias nas cidades, é um desafio considerável, que demanda tempo e paciência. No caso das recentes discussões sobre a revisão do PDE (Plano Diretor Estratégico) da capital paulista, mais do que artigos e alíneas, salta aos olhos o foco excessivo nas paisagens que se consolidaram no perímetro conhecido como Centro Expandido, ou seja, no interior das vias que compõem o chamado mini-anel viário e nas quais incide o rodízio de veículos.

Em meio à disputa, para além do ridículo apelo pela preservação de bares elitizados e livrarias mal administradas, fica nítido que a ideia de cidade e, até mesmo, de casa própria, terminam distorcidas para se encaixarem nos anseios de quem está no topo da pirâmide.

A discussão de uma cidade balizada no uso cínico do automóvel e na preservação de sobrados, em meio a um fenômeno à normalização da captura da mais-valia resultante da construção de estações de linhas metroferroviárias, infelizmente, contamina e ilude. Entrar no mercado imobiliário formal, infelizmente, é difícil. E fica ainda mais difícil quando um punhado de privilegiados não se comove nem com os filhos de seus vizinhos, que mesmo bem empregados, enfrentam desafios para a construção de uma vida independente, tamanho o elevado custo do m².

Indivíduos privilegiados, com níveis patrimoniais que os distinguem da base da pirâmide socioeconômica, pautam a cidade a partir de espaços produtores de exclusão, mas com discursos superficialmente inclusivos. São Paulo é muito menos uma Livraria Cultura e muito mais Grajaú. É muito menos sobrado antigo em bairro nobre e muito mais imóveis autoconstruídos em favelas e loteamentos clandestinos.

Cada vez mais, estou convencido de que o cerne das péssimas discussões urbanísticas está no consumo. Uma parcela do campo progressista parece viver uma síndrome de impostor quando se trata das trocas que realiza em um ou mais mercados. O consumo se entrelaça com uma série de padrões demográficos, dando indícios sobre renda, deslocamentos, nível educacional, entre outros aspectos. É a partir do consumo que sedimentamos nossa relação com a cidade.

Quando favelas e loteamentos clandestinos ou irregulares não integram o debate, significa que a maior parte da cidade não foi convidada a debater. Significa, ainda, que o sonho da casa própria pode estar sendo pautado por realidades que não refletem aquelas vivenciadas pela maior parte da população.

Não por acaso, o transporte público aparece muito pouco. Não por acaso, jovens estabelecem parâmetros bastante distintos de muitos adultos que, hoje, já são pais e mães. Não por acaso, uma região metropolitana de quase 40 municípios é resumida a meia dúzia de endereços paulistanos. Em outras palavras, o debate contaminado constrói numa noção de “futuro ideal” que exige uma renda capaz de suportar a aquisição e manutenção de uma casa térrea ou assobradada em distritos como Pinheiros e Vila Mariana, além de meios individuais de transporte, com amplo destaque para o automóvel, sempre rodeado de sutilezas e artifícios.

O resultado dessa forma negacionista de encarar a cidade, parece fazer com que o vasto tecido de casas das periferias, que avança dezenas de quilômetros para além do Centro Expandido paulistano, atingindo múltiplos municípios, converta-se numa paisagem indesejável ou imemorável, uma paisagem deliberadamente inviabilizada.

Longe das performances discursivas das redes sociais, a periferização não dá trégua. Com feições que pouco lembram as áreas nobres que subvertem o debate, tecidos com longas e tortuosas quadras, relevo declivoso e imóveis com diferentes níveis de acabamento (ou da falta dele), continuam abrigando os maiores sonhos, dores e agonias. É neles que estão os terrenos mais acessíveis e a origem de longas jornadas que combinam ônibus municipais, intermunicipais e os trens metropolitanos.

Ninguém disse que seria bonito, nem que há escolha, mas negar a realidade é muito mais feio. E, com a negação, a negligência e a marginalização tomam conta, o que só amplia a agonia coletiva e a sensação de impotência.

Quando convido urbanistas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) a deixarem São Paulo, não estou expulsando ninguém, até porque, nem eu, nem qualquer pessoa deste Coletivo, tem o poder e o desejo de expulsar intelectuais. Trata-se de uma provocação. Talvez explícita, talvez deselegante, mas, ainda assim, uma provocação. Esse texto é um exemplo do que eu disse, fica importando soluções dos EUA e achando que é vanguarda do conhecimento técnico.




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