Por Caio César | 09/07/2023 | 41 min.
Índice
Introdução
Há cerca de três anos, temos discutido como os rumos da revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, sancionado hoje com alguns vetos pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), não eram adequados. Nosso descontentamento com a oposição não se limitou aos artigos publicados no site do Coletivo, invadindo periodicamente dimensões da vida pessoal.
Neste artigo, trazemos um compilado de objeções em relação à revisão e argumentos chamando a atenção para problemas narrativos, discursivos ou argumentativos, para tanto, pedimos ao ChatGPT para parafrasear uma série de publicações no Twitter, em seguida, adaptamos respostas e comentários feitos por diferentes pessoas do COMMU. Para preservar todas as pessoas envolvidas, nenhum perfil em rede social será conectado às passagens a seguir.
Incluímos ainda comentários a alguns artigos ou colunas que surgiram em meio às objeções (nestes casos, oferecemos os endereços das fontes, mas nem sempre optando por algum tipo de reprodução ou transformação do conteúdo).
Infelizmente, a revisão já foi aprovada. Infelizmente, a esquerda não só saiu como derrotada, como, acima de tudo, terminou como representante dos interesses das associações reacionárias de bairros nobres. Esperamos que o passado recente possa suscitar mudanças substanciais nas estratégias políticas e ativistas acerca de quaisquer temas urbanos.
Produção imobiliária
Generalização desonesta em relação a preço e metragem
“Seria interessante ouvir a perspectiva dos supostos moradores de apartamentos de 20 m² que custam meio milhão de reais.”
Após descobrirmos o endereço da casa da herdeira entrevistada pela BBC, que se tornou um símbolo da classe média e alta que critica questões sociais em bairros com infraestrutura e alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), naturalmente verificamos as ruas próximas da residência no VivaReal, um conhecido site de classificados imobiliários.
Encontramos alguns imóveis com custo × benefício muito superior a “apartamentos de 20 m² que custam meio milhão de reais”, como, por exemplo, um apartamento de 90 metros quadrados por R$ 450 mil, o que corresponde à metade do valor por metro quadrado de imóveis novos, de acordo com uma rápida e superficial pesquisa que fizemos.
Também encontramos outro apartamento de 91 metros quadrados por R$ 700 mil, mas com um valor consideravelmente mais alto de condomínio. De qualquer forma, na faixa de R$ 700 a 800 mil reais, existem várias opções no portal, tanto casas quanto apartamentos, incluindo unidades com metragem superior a 90 metros quadrados.
Nota do autor: não é comum encontrar quitinetes de 1 milhão de reais, acredito que nem mesmo no Itaim Bibi. Recentemente, passei perto de um empreendimento da Yuny na rua Jerônimo da Veiga, 155, durante um compromisso e, ao fazer uma busca depois, constatei que, mesmo em uma região que é um caldeirão gastronômico de luxo, os preços das pequenas unidades de 21 m² estavam abaixo de 700 mil reais. Percepção similar se aplica a um empreendimento da Cyrela em Perdizes, com quitinetes de 31 m² abaixo de 500 mil reais.
Indecisão sobre preço mínimo na Vila Mariana
“Qual é esse povo que está se mudando para mais perto? Não é possível encontrar um apartamento na Vila Mariana por menos de R$ 1.000.000, meu amigo, pelo amor de Deus.”
Na verdade, existem opções mais em conta. Encontramos vários exemplos, como um apartamento de 50 m² na Vila Mariana, que aparentava ser uma penhora da Caixa, sendo anunciado por R$ 210 mil. Como comentamos acima, também encontramos um apartamento de 90 m² por R$ 450 mil, com condomínio de R$ 440… um valor bem razoável. Imóvel que, na data de publicação deste artigo, já aparecia como indisponível, ou seja, provavelmente foi vendido em poucos dias.
“Você fala como se esses prédios na Vila Mariana fossem se transformar em moradias populares, e não em apartamentos que custam no mínimo 2.000.000, com condomínio de 1.500. Se liga.”
É impressionante como a desonestidade age. Começou com 1 milhão, mas logo dobrou. Esses apartamentos estão se valorizando rapidamente, não é mesmo? Falando sério, usando sites de classificados, como VivaReal, é mais difícil ser enganado por pessoas emocionadas em redes sociais.
Instrumentação da pobreza para justificar baixa produção habitacional (1)
Em tom sarcástico:
“Sim, claro, afinal, um prédio moderno na Vila Mariana certamente atrai como comprador o morador de baixa renda da periferia.”
Nem os prédios nem as casas possuem esse perfil de comprador. A diferença é que os prédios têm um maior potencial de oferta e, quando respeitada a cota-parte, também podem oferecer unidades menores e, consequentemente, mais acessíveis. Ainda são unidades caras, mas a preços menos obscenos do que a especulação imobiliária em sobrados.
Além disso, existe a possibilidade de redução dos preços das propriedades antigas. No entanto, se continuarmos recompensando os especuladores, ninguém se preocupará com senhoras de 90 anos na periferia, já que muitas regiões periféricas não oferecem qualidade de vida suficiente para que as pessoas vivam além dos 70 anos.
E a cidade continua sendo cidade. Assim como uma pessoa escolhe não vender, outras escolhem vender. E, dessa forma, o tecido urbano se transforma. O extremo dessa discussão tola e desonesta é travar ainda mais, imitando as associações de proprietários nos EUA. Já sabemos como isso acaba.
Ah, sim, e a especulação vale para qualquer figura, seja pequena ou grande. O que aconteceu naquele caso, como já mencionei e repito, é que alguém queria um valor exorbitante para gerar riqueza geracional às custas de todos. A incorporadora não precisou pagar esse preço. Hoje, a casa vale menos.
Existem muitos perfis assim em outros mercados. Pessoas que tentam “acertar o topo”. No caso em questão, a pessoa não acertou, pois superestimou o valor máximo. Chamamos isso de ganância. É doloroso, mas aquela família, aparentemente, estava se aproveitando da valorização da Linha 1-Azul desde a década de 1960, sob aplausos da esquerda reacionária.
Instrumentação da pobreza para justificar baixa produção habitacional (2)
“Grupos como o Movimento Pró-Pinheiros, entretanto, criticam a expansão, por considerarem que, na prática, os entornos dos metrôs e das faixas de ônibus servirão para a aumentar ainda mais a construção de microapartamentos na cidade, sem gerar um adensamento populacional necessário a áreas centrais de São Paulo, ou na Zona Oeste.”
A passagem acima foi extraída de um texto da CartaCapital que, mais uma vez, coloca no PDE (Plano Diretor Estratégico) revisado o ônus de uma oposição elitista e adepta de terraplanismo econômico. Confundindo-se com a Gazeta de Pinheiros, a CartaCapital destaca um comentário catastrofista do Pró-Pinheiros, um dos artífices da escassez.
Por que isso aqui merece credibilidade? Por que é que a esquerda, que é tão afiada para falar de pobreza e concentração de renda, não tem o mesmo olfato aguçado quando se trata de morfologia, uso e ocupação do solo, mais-valia urbana, etc?
Aproveitamos para fazer um apelo, novamente, contra a utilização indiscriminada e acrítica do termo “miolo de bairro”, que acaba subscrevendo uma noção suburbana do tecido, normalizando a horizontalidade fora de lugar.
Instrumentação da pobreza para rejeitar unidades menores e mais acessíveis (1)
“São nesses 20 m² que o personagem pobre metafórico espera criar seus dois filhos com sua esposa metafórica.”
O “pobre metafórico” nunca foi abordado na maioria das discussões sobre apartamentos pequenos, independentemente de como eles sejam chamados (quitinetes, estúdios ou qualquer outra denominação). O pobre constrói sua própria moradia nas periferias, quando tem tempo e conforme suas possibilidades. Já que só parece haver aspirantes a burgueses na discussão, informem-se primeiro. Recomendação de documentário: Fim de Semana (1976), baseado na pesquisa e orientação de Ermínia Maricato.
Instrumentação da pobreza para rejeitar unidades menores e mais acessíveis (2)
Em tom sarcástico:
“Sim, é claro, o pobre metafórico simplesmente não se muda para a Vila Mariana por falta de opções. Ele está apenas aguardando a oportunidade de encontrar um micro apartamento de 400 mil reais, disponível lá para fazer esse investimento.”
Claro, é óbvio! O bairro tem um valor por metro quadrado de mais de R$ 10 mil e está repleto de casas. Se a demanda supera a oferta, torna-se um leilão. A tendência é que o valor por metro quadrado aumente. Mesmo com unidades pequenas, a competição continua intensa, limitando o acesso e a inclusão. É extremamente evidente.
Além disso, alguns de nós estão longe do rótulo de pobre metafórico. Históricos bancários de mais de 10 anos falam mais do que qualquer pessoa justiceira do Twitter. E, durante esses mesmos 10 anos, falando incansavelmente sobre a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) neste Coletivo, ninguém se comoveu tanto quanto com meia dúzia de herdeiros do Centro Expandido.
Na visão de alguns de nós, a questão é clara: temos uma esquerda reacionária, estruturalmente racista e, acima de tudo, covarde. Uma esquerda que normaliza a produção de desigualdades, mas não tem coragem sequer de ir para as periferias, nem mesmo para os núcleos de classe média! Beira a insanidade.
Instrumentação da pobreza para rejeitar unidades menores e mais acessíveis (3)
Os comentários a seguir são dirigidos à edição de 28 de junho da coluna de Flávia Boggio na Folha de S.Paulo.
“Defensores da revisão alegam que os novos prédios permitirão que pessoas da periferia morem nos grandes centros.”
Parece bem difícil que a periferia tenha tamanho acesso, até porque, o aumento da oferta ainda é tímido e, com décadas de autossabotagem, até mesmo pessoas das classes médias foram expelidas para longe.
A grande questão aqui, nessa peça humorística hipócrita, é que a falta de acessibilidade para determinados extratos de renda, como sempre, se transforma no combustível para construção de espantalhos, justificando a manutenção da demanda reprimida, o que é absurdo.
É bastante intuitivo que, com o desinteresse generalizado em torno do aumento da oferta de HIS (Habitação de Interesse Social), além do fetiche com a paisagem que resulta em restrições sem sentido, um ambiente hostil é sustentado, produzindo efeitos deletérios e magnificantes.
Não é óbvio? A cidade estimula preços absurdos para sobrados de qualidade duvidosa em áreas centrais, como o entorno do MorumbiShopping, que não apresenta tecido compatível com a presença de 2 corredores de ônibus e 2 linhas de metropolitano (sendo a Linha 9-Esmeralda a mais próxima).
Os efeitos da precificação vão reverberar em todo o tecido. Não só na periferia paulistana que apresenta relações funcionais com aquele tecido, mas toda a periferia metropolitana. Vai afetar Embu das Artes, vai afetar Taboão da Serra, vai afetar Cotia. Estranho seria o contrário.
O município cobra outorga, engorda a arrecadação e não utiliza o caixa. Prioriza obras viárias de utilidade duvidosa (como o prolongamento da Chucri Zaidan) em detrimento de habitação acessível. Comercializa terrenos, abrindo mão de terras que poderiam abrigar conjuntos habitacionais.
Humoristas, jornalistas, urbanistas e outros “istas” com curso superior e capital social acumulado, não se movimentam. Não publicam colunas apontando a negligência do Executivo paulistano, que também tem sabotado a malha cicloviária e preterido faixas exclusivas e corredores.
O fechamento de bares de relevância duvidosa ou a proliferação de franquias genéricas, por exemplo, recebe muito mais espaço. Tivemos até mesmo um vídeo que deixou claro: padaria, escola particular e casa do avô escravocrata são muito mais importantes.
Então, talvez, só talvez, a colunista não seja muito diferente de seu personagem Du Pirozzi. A diferença é que, no lugar de uma Porsche Cayenne, distorce o papel das áreas verdes e a necessidade de melhorar os índices de densidade demográfica, que denunciam que a periferia é mais densa.
Mas no fundo, o recado é o mesmo: “meu ideal de bucolismo sobradista vale mais do que muita gente por aí”, enquanto, cínica, não percebe que é copartícipe do processo de elevação dos preços do m² em áreas desejadas, como Pinheiros, citada literalmente.
Ademais, assim como os clientes imaginários do personagem Gerson Todeschini, claramente falta gente utilizando metrô nos espaços seletos dos debates. Se metade de quem abre a boca para defender padaria artesanal dependesse dos trens da CPTM, o teor da conversa seria outro.
Os problemas do PDE (Plano Diretor Estratégico) recém-revisado não começaram hoje, muito pelo contrário. E o desinteresse em torno de soluções concreta, tampouco. Brigar por ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), só se for para retirar, como aconteceu num certo morro de classe média, rendendo aplausos de vereanças de esquerda.
Instrumentação da pobreza para rejeitar unidades menores e mais acessíveis (4)
“O que eu presenciei foram edifícios de grande porte sendo construídos em áreas já consideradas nobres, com apartamentos que ultrapassam os 100 m² e possuem mais de 20 andares. Vamos ser realistas: que pessoa de baixa renda pode pagar mais de 15 mil reais por metro quadrado? 15 mil × 100!?”
Nesta objeção, sublinhamos a passagem “áreas já consideradas nobres”, pois ela é nevrálgica para compreendermos a contradição existente.
Ora, se o m² já girava em torno de R$ 15 mil e a morfologia indicava baixa capacidade de absorção da demanda, como é que o valor do m² seria reduzido?
Negação dos efeitos deletérios de um tecido da baixa densidade
Em reação a Nabil Bonduki, que defendeu que “uma propriedade com baixíssima densidade do lado de uma estação de metrô não está cumprindo a função social da propriedade […] perder esse local pode ser algo ruim para a pessoa, mas esse é um interesse individual. Estamos falando aqui do interesse coletivo” na supracitada reportagem da BBC.
“É difícil manter uma reação civilizada ao ler esse tipo de discurso sobre o interesse coletivo. É realmente lamentável. As famílias que estão sendo prejudicadas em sua tradição de moradia são aquelas associadas às construtoras e operadoras da rede de transporte coletivo?”
Mas as reações não têm sido civilizadas mesmo. Como sociedade, expulsamos multidões, incluindo gente de classe média, a troco de manter os privilégios de uns herdeiros. No entanto, quando se trata de enfrentar os desafios dos bairros que surgem nas franjas, muitos dos quais são praticamente insalubres, aqueles que demonstram solidariedade para com os herdeiros fecham os olhos e não oferecem auxílio.
Romantização de tecido de baixa densidade a partir de um verniz ambiental ou natural (1)
“O novo plano diretor de São Paulo, focado nos muito ricos, só aumenta minha vontade de deixar este lugar a cada dia. Para mim, riqueza não se resume a ter um apartamento luxuoso com cinco vagas na garagem. Riqueza significa estar próximo da natureza e desfrutar de paz. Esta cidade está prejudicando minha saúde mental.”
Compreendemos esse ponto de vista acima, mas vamos discorrer sobre alguns aspectos.
De partida, a falta de paz em São Paulo está relacionada à prioridade excessiva concedida aos automóveis. Se desejássemos ter dois grandes parques lineares, poderíamos considerar a possibilidade de desativar as marginais dos rios Pinheiros e Tietê, redirecionando o tráfego das rodovias para outras avenidas próximas.
Para a desativação das marginais, estudos de simulação podem ser úteis, contudo, enfatizamos: enquanto não tivermos coragem de abordar de forma concreta o transporte público, não resolveremos o problema. Os carros não surgem do nada. O tráfego originado do interior não desaparecerá da noite para o dia (e parte desse tráfego é resultado do escassez de moradia na capital).
As origens do tráfego de automóveis têm nomes e números, tudo pode ser mapeado. A situação da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) também é facilmente mapeável. Como temos discutido, podemos ajudar aqueles que desejam morar mais longe sem abrir mão do conforto. Isso pode ser feito a um custo relativamente baixo, desde que haja preocupação com a CPTM atual.
A CPTM atual atende, em muitos casos, pessoas de baixa renda que vivem em loteamentos irregulares que ocuparam áreas verdes. Se quiséssemos ir além, poderíamos considerar a possibilidade de reflorestar e realocar, mas isso seria um processo extremamente desafiador, caro e doloroso. Faz parte da realidade.
Como sociedade, somos estruturalmente enraizados em xenofobia e racismo, e isso permeia 99% do que é dito sobre as cidades. Basta olhar a cobertura midiática, tanto da mídia hegemônica quanto da alternativa, incluindo veículos especializados, que não reflete a complexidade da realidade urbana.
Em uma fase posterior, poderíamos criar um trem-bala utilizando as rodovias que atualmente estão congestionadas de carros, sem prioridade ou estruturação do transporte rodoviário em escala regional. Enquanto as linhas mais longas e confortáveis de ônibus rodoviários não forem tratadas como trens, elas serão ineficientes.
A mobilidade regional entre as metrópoles e aglomerações urbanas paulistas, pelo menos nas últimas décadas, tem se dado por meio de rodovias, geralmente concedidas e dotadas de múltiplas praças de pedágio. Tais rodovias, quando comparadas com as ligações sobre trilhos existentes, geralmente voltadas para o transporte urbano ou apenas para o transporte de cargas, são mais modernas e apresentam traçado menos sinuoso, conferindo aos seus utilizadores tempos de viagem bastante competitivos fora dos horários de pico.
Explicamos: seria necessário ter corredores de ônibus em rodovias, mapeamento para a criação de rodoviárias com pontos de apoio que funcionem como estações intermediárias. Seria necessário ter legibilidade, com linhas numeradas, nomes, itinerários, GPS, GTFS e muito mais. Atualmente, ainda estamos muito atrasados nesse aspecto.
Em resumo, mesmo sem um trem-bala, mesmo sem dividir o atendimento da CPTM como temos sugerido em resposta aos trens regionais de baixo desempenho (potencialmente conflitantes), poderíamos ter um sistema de transporte sobre pneus muito mais avançado do que o atual. Mais uma vez, é uma questão de vontade.
Justificativa Considerando as últimas discussões que realizamos internamente a respeito do transporte sob demanda, uma das possibilidades levantadas é a de que o modelo do fretamento (quando pessoas ou grupos de pessoas contratam um ônibus para se deslocarem entre pelo menos dois pontos, a partir de necessidades em comum) possui o espaço e a força que conhecemos, sendo onipresente na capital paulista, devido à situação da malha de transporte sobre trilhos.
Outra coisa importante é que o argumento do bucolismo sempre implica uma relação entre a população residente e a distância das viagens. Sabemos exatamente onde isso leva: ao urbanismo malthusiano, à suburbanização, aos muros altos e ao ódio contra aqueles que não desfrutam do “direito de eu cheguei primeiro”.
Além disso, não reduzimos o tráfego de veículos em diversas ruas simplesmente porque não queremos. É por isso que São Paulo é tão desafiadora. Sim, há pessoas que precisam sair da cidade, mas também há muitas que desejam entrar. Sem saber, muitas pessoas sonham com um subúrbio de classe média em outro município da região metropolitana.
A ameaça de deixar a capital frequentemente resulta na romantização de uma vida centrada no automóvel no interior. Como o interior geralmente oferece salários mais baixos e empregos limitados, muitas pessoas não têm a capacidade de fazer essa mudança. Outros fazem uma mudança parcial e acabam estabelecendo uma relação funcional do tipo subúrbio-centralidade, que pode ser bastante negativa, impondo longos deslocamentos por rodovia e a utilização de ônibus fretados caros e limitados.
Precisamos de mais pessoas capazes de examinar esses fenômenos que estão presentes em grande parte das discussões atuais sobre o mercado imobiliário. Essas discussões geralmente são distorcidas e performáticas, com abstrações que protegem interesses duvidosos, como a aliança reacionária entre urbanistas e associações de bairros.
Frisamos que o PDE (Plano Diretor Estratégico) revisado erra ao incentivar vagas, mas especialistas também estão errando ao tratar de forma equivocada o transporte público, ignorando o efeito de uma isócrona de 15 ou 20 minutos, com o objetivo de congelar a paisagem. Mesmo com o incentivo, outras ações deveriam desestimular carros, tais como, entre muitas outras:
- Acalmamento do tráfego;
- Limitações físicas e geométricas, principalmente em vias locais;
- Implantação de linhas de ônibus ainda mais locais (chamadas por nós de linhas superlocais);
- Pedestrianização de ruas ou quadras inteiras;
- Melhorar a infraestrutura para mobilidade a pé; e
- Mitigar a utilização do viário de interesse regional e metropolitano.
Romantização de tecido de baixa densidade a partir de um verniz ambiental ou natural (2)
“O resultado é um plano que coloca em risco o futuro de uma cidade onde a maioria dos habitantes gostaria de se mudar, diante de perspectivas preocupantes relacionadas ao aquecimento global e com uma falta de liderança evidente. Ao invés de reconhecer o problema, a revisão do Plano Diretor propõe um novo ataque ao enfermo”.
A passagem acima parafraseia um parágrafo do texto de opinião de Mauro Calliari, publicado em 9 de junho na Folha de S.Paulo.
Com todo respeito, Mauro, você poderia ter 30 doutorados, mas sua coluna é pura empáfia. Você e outros esquerdistas (reacionários no trato com a cidade e quem nela vive) estão levando o debate para a arena da caridade moral. Pelo que sei, ninguém pediu caridade ou bondade das classes A e/ou B.
Sua coluna, como parece ser praxe no movimento pró-subúrbio, que une parcelas da direita e da esquerda numa via auxiliar ao governo do Nunes, cita o meio ambiente apenas como aceno vazio. Ao rechaçar a verticalização em seguida, o recado é bastante claro e vai na contramão da sustentabilidade.
Esse tipo discurso, que tortura a cidade para se encaixar numa ideia de construção meramente especulativa, enquanto protege especuladores pró-congelamento, que querem capturar ganhos de escala e de infraestrutura, podendo fugir de São Paulo a qualquer momento, não comove.
Se sobrou densidade construída, foi no Centro Expandido, porque nas periferias paulistanas, o parque imobiliário não parece estar ocioso. Todo prédio pequeno que sai é vendido rapidamente, até porque, os lotes são pequenos, vários nem chegam nos 8 andares possíveis e as unidades raramente passam de 40 m², logo, a oferta ainda é bastante restritiva.
Continua escasso. Não existe moradia acessível para todas as faixas de renda. O que existe é um abrandamento dos preços porque a oferta aumentou, mesmo com gente chorando porque derrubaram a casinha ‘X’ da rua ‘Y’ ou porque o comércio ‘B’ da rua ‘N’ fechou.
Cada vez mais, estou convencido de que o cerne das péssimas discussões urbanísticas está no consumo. Uma parcela do campo progressista parece viver uma síndrome de impostor quando se trata das trocas que realiza em um ou mais mercados. O consumo se entrelaça com uma série de padrões demográficos, dando indícios sobre renda, deslocamentos, nível educacional, entre outros aspectos. É a partir do consumo que sedimentamos nossa relação com a cidade.
Pelo menos parte dos membros do COMMU suspeita que a acessibilidade aumentou no Centro Expandido e, para estes membros, não há sentido em sofrer por antecipação em relação à revisão do zoneamento, se a tônica continuar sendo pró-congelamento, pró-espraiamento, pró-instrumentação da pobreza, pró-suburbanização. O aumento da acessibilidade no Centro Expandido ainda parece tímido demais para beneficiar as classes mais baixas, infelizmente.
As “surpresas” estão chegando para quem tenta se colocar como um ator caridoso e separado do mercado, algo inexistente. O que existe é maucaratismo e desonestidade, na forma de manutenção das paisagens e alavancagem de heranças, jogando as externalidades nas costas das periferias.
Em tempo, sua coluna nos deu uma excelente ideia: alterações regulatórias para garantir que os planos de bairro não possam se transformar um tombamento paralelo. Se querem tanto discutir projeto, comecem pelos aspectos urbanísticos: calçadas, mobiliários, circulação etc. Que tal?
É o fim das “casas de vó”
“Sinto falta dos tempos em que as ‘casas de vó’ eram comuns, mas atualmente parecem existir apenas em bairros mais nobres.”
Olha, não é por nada não, mas ainda está cheio de “casa de vó” na Zona Leste de São Paulo. O problema é querer casa assim do lado da Estação Fradique Coutinho. Só isso, só. Pode erguer casa assim em vários lugares ainda, só vai precisar morar a uma distância maior das unidades da Z Deli ou da Frida & Mina.
Herança e patrimônio
Normalização seletiva de comportamentos especulativos
“Raul Juste Lores está colocando a culpa da especulação imobiliária na cidade de São Paulo nas costas de uma única família, haha.”
Esta objeção parece uma falácia do espantalho, distorcendo o argumento do outro interlocutor. Na verdade, a culpa é compartilhada. Quem venderia uma propriedade abaixo do valor de mercado? Ninguém. Quem associaria seu próprio imóvel a um prejuízo a longo prazo? Ninguém, mesmo quando a propriedade e sua localização não são atrativas ou não se valorizam. É aí que entra a especulação. ¯\_(ツ)_/¯
Há quem comente que a incorporadora só pagaria "30-40% do valor real" para os proprietários de um sobrado que acabou entre dois edifícios. Afinal, qual seria esse valor real? Se a incorporadora tem um limite de X milhões para pagar e ainda construir o prédio e obter lucro, enquanto o proprietário do terreno está esperando três vezes esse valor, temos algumas novidades sobre quem é o especulador!
A união da esquerda reacionária, formada por arquitetos e urbanistas, associações de bairros nobres e simpatizantes, poderia formar um banco de terras capaz de fornecer habitação a um custo muito baixo para milhares de pessoas. Isso causaria inconvenientes aos “doadores”, mas eles ainda morariam em unidades construídas no mesmo local.
Claro, isso seria muito altruísta, certo? É, sim, verdade que estaríamos transferindo milhões de reais com base no idealismo.
Enfim, já que ninguém da esquerda está disposto a ceder, continuamos com discursos e narrativas que capturam os mais pobres para preservar alguns milhões de uma minoria privilegiada. À maioria, alijada da política paulistana, resta apenas brigar por ZEIS (zonas especiais de interesse social) em bairros nobres, Cohab (conjuntos habitacionais da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) em locais distantes e aumentar a oferta de moradias em geral.
Obviamente, ninguém na esquerda é obrigado a fazer filantropia ou voto de pobreza, mas afinal, por que alguém acumula patrimônio? E às custas de quem? Ou o discurso sobre o mal do capitalismo só se aplica aos outros? Desculpas familiares não funcionam. É acumulação de riqueza, ponto final.
Parece-nos claro que alguns querem proporcionar um futuro melhor para seus entes queridos. E daí? Quem não quer? O que está em jogo nesse debate distorcido é o que diferencia ideologicamente as duas extremidades do espectro. Do jeito que está, a diferença não é tão grande quanto deveria ser.
Com algumas permutas, essa esquerda rica poderia ter grandes porções de terra nas periferias. Seria até possível realocar famílias para a produção de alimentos. Essa é a extensão do abismo. Seria possível pensar em diversos tipos de arranjos, transferências e modelos. Melhor do que ONGs pró-bairro jardim (um tipo de bairro que foi desavergonhadamente tratado como “resistência” pela Folha de S.Paulo).
Claro que isso é difícil de realizar, especialmente porque os valores das propriedades estão em constante mudança (alguns ricos se tornariam mais pobres, com a possível queda no valor do m²), mas não achamos impossível, se bem planejado (é para isso que servem os intelectuais).
Um dos nossos grandes sonhos é que os proprietários de sobrados no Centro Expandido tenham um prejuízo que, somado, chegue aos bilhões de reais. Isso seria um estouro de bolha. São pessoas que apostam no aumento dos preços, não admitem, surfam na ideia de “sempre sobe, é uma alta infinita” e lutam pelo protecionismo. Deveríamos sentir pena?
São pessoas que alegam “lutar” por HIS (Habitação de Interesse Social) para os outros, mas não explicam como viabilizar habitação para aqueles que mais precisam, quando o m² custa uma fortuna. Claro que a prefeitura de São Paulo poderia fazer HIS. Sempre pôde. Não faz porque os proprietários sabem que isso reduziria o valor do metro quadrado deles, atuando politicamente na proteção dos próprios interesses!
A produção de HIS por parte da prefeitura paulistana exigiria um empenho elevadíssimo de recursos para tentar contornar os problemas do protecionismo de décadas, mas seria possível construir muitas habitações. Suspeitamos que um modelo misto poderia ser implementado, com arranha-céus que combinariam HMP (Habitação de Mercado Popular) e várias faixas de HIS. Isso desestimularia parte ou grande parte da especulação, provavelmente.
Infelizmente, essa discussão nunca chegou a esse ponto. E não chegará. O Twitter, rede da qual partiu a objeção, é dominado pelas classes A e B. O discurso fala por si só. As pessoas não reconhecem sua própria posição na pirâmide social e adotam um discurso caridoso, mas vazio. Há muita zombaria e zero interesse real, porque não desejam diminuir o abismo social, uma vez que não toleram proximidade com as camadas sociais que compõem as bases da pirâmide.
E tem gente das classes C, D e E que entra nessa onda! Triste e impressionante, além de ser falta de consciência de classe. Ninguém acima da pirâmide gosta quando a linha é traçada. Todo mundo quer ter consciência tranquila. Impossível! A conscientização não traz paz, traz conflito e mina o status quo.
Discutir legislações áridas e complexas, como são aquelas que regulam a vida e a circulação de pessoas e mercadorias nas cidades, é um desafio considerável, que demanda tempo e paciência. No caso das recentes discussões sobre a revisão do PDE (Plano Diretor Estratégico) da capital paulista, mais do que artigos e alíneas, salta aos olhos o foco excessivo nas paisagens que se consolidaram no perímetro conhecido como Centro Expandido, ou seja, no interior das vias que compõem o chamado mini-anel viário e nas quais incide o rodízio de veículos.
Proteção ao pequeno herdeiro para ignorar que acesso à casa própria ainda é privilégio (1)
“É uma pena que o Raul Juste Lores tenha usado um exemplo relevante de Heliópolis (condomínio Vitória) para ignorar a absurda afirmação que fez sobre a Vila Mariana, haha.”
Não se trata de uma bizarrice. Para a maioria das pessoas, ter uma casa própria é um sonho distante. Ter um conjunto de casas ao lado de uma estação de metrô dos anos 1960, na região Centro-Sul da maior cidade do nosso continente, é, com todo respeito, uma imoralidade hedionda, com requintes de crueldade.
A manutenção desse tecido urbano gera escassez, o que contribui para o aumento dos preços. A preservação contínua dessa morfologia é um instrumento de gentrificação. Não são os novos prédios, mas sim as restrições do passado que causaram a gentrificação. A população envelhece e concentra patrimônio.
A tipologia da oferta imobiliária baseada na lei do Plano Diretor surgiu de um desenho conciliador, mas ainda conservador demais. É possível que tenha contribuído, principalmente, para conter o aumento dos preços em um ambiente de demanda considerável, em meio a problemas econômicos e juros altos, não tanto para baratear substancialmente.
Se tivéssemos uma oferta maior, talvez pudéssemos ampliar o acesso das classes médias, o que, com otimismo, poderia estimular um movimento de desaceleração da periferização, incentivando a migração dos anéis mais distantes para os anéis intermediários. De qualquer maneira, é preciso ter os pés no chão: ainda seria um processo lento e doloroso.
O que não podemos fazer é manter essa encenação. Não conhecemos ninguém no Centro Expandido que esteja disposto a doar terrenos para habitação social. Todo mundo quer vender, e no caso da herdeira entrevistada pela BBC, fica claro que ela não queria vender pelo preço de mercado — e, com o perdão da franqueza, possivelmente, as ofertas superavam o preço de mercado, mas, mesmo assim, foram rejeitadas. Ora, se o terreno é caro, as unidades também serão caras.
Proteção ao pequeno herdeiro para ignorar que acesso à casa própria ainda é privilégio (2)
Ainda em resposta ao mesmo vídeo do condomínio Vitória:
“A comparação é inadequada e sua argumentação parece defender o utilitarismo, além de rotular pobres como herdeiros riquíssimos. Isso pode ser considerado um discurso desonesto.”
Quem vive em um sobrado de 90 m² a menos de 500 metros da estação Vila Mariana não é considerado pobre. A pobreza está relacionada à falta de acumulação de riqueza, mas no caso mencionado existe um aspecto hereditário que remonta à década de 1920. O Twitter se emociona demais com as classes médias e altas, pois é dominado por elas.
O problema dessa falta de representatividade no Twitter em relação às classes mais baixas e suas realidades cotidianas é que as publicações retratam uma cidade minoritária, com um estilo de vida praticamente exclusivo. Infelizmente, o Twitter tem muito pouca presença das periferias, embora contribua para lhes vender ilusões.
Como plataforma, o Twitter, é uma rede social repleta de chá de hibisco, pastrami e queijo brie. É como uma hamburgueria com parede de tijolinhos aparentes, mobiliário preto fosco e iluminação âmbar intimista. Reforça os estereótipos de uma esquerda hipster, que transforma a consciência em estética e performance. É um teatro dos eleitores que votam na esquerda não porque são progressistas, mas porque não se identificam com a direita. O reacionarismo e a solidariedade com as classes mais altas deixam isso muito claro.
Nota do autor: eu, como intelectual orgânico e um dos idealizadores do Coletivo, jamais me curvarei aos endinheirados e sempre apontarei as contradições dos supostos aliados.
Proteção ao pequeno herdeiro para ignorar que acesso à casa própria ainda é privilégio (3)
Ainda no contexto da reportagem da BBC:
“É necessário ter um grande apreço pelas construtoras para rotular uma senhora que deseja passar o resto da vida na casa em que nasceu como ‘herdeira’, como se ela fosse proprietária de outros 30 imóveis, que é exatamente o tipo de pessoa que compra esses apartamentos minúsculos que tanto defendem.”
É importante deixar claro aqui: a objeção trata como normal aquela casa e, potencialmente, outras similares, porque há identificação com a figura do pequeno herdeiro.
Mesmo sendo politicamente ruim, precisamos destacar que a cidade é um jogo de soma zero e que dois imóveis não ocupam o mesmo terreno. Para cada casa a 500 metros de uma estação, há muito mais terrenos nas franjas. Quantas pessoas sensibilizadas com a tímida transformação do entorno da Estação Vila Mariana visitam e se importam com loteamentos clandestinos a mais de 50 km de distância dali?
A enorme disparidade socioeconômica permite a existência dessa classificação que alguns consideram dura e ofensiva. Levando em conta o preço médio praticado na região, excluindo o Valor Geral de Vendas (VGV) que pode ter sido usado na negociação, estamos falando de uma quantia em torno de R$ 1 milhão atualmente. Não é algo acessível para qualquer pessoa.
Apenas no Twitter se acredita que acumular um patrimônio de milhões é algo que qualquer pessoa pode fazer a qualquer momento. A vida não funciona assim. A cidade não funciona assim. A cidade não trata apenas dos privilégios das pessoas que chegaram primeiro (no caso, na década de 1920).
Nota do autor: duvido que a proposta não tenha sido justa. O que provavelmente aconteceu é que alguém queria chegar mais perto do topo da pirâmide sem fazer absolutamente nada. Sabe como chamamos isso? Especulação. E sabe o que acontece com especuladores gananciosos? Vendem quando os preços estão mais baixos, porque são imprudentes.
“Eu fico imaginando o que esses assessores de construtora pensariam da minha família, que mora junta em uma única casa na Vila Mariana há décadas e só quer preservar o único patrimônio que possuem, sem trocá-lo por um apartamento de 30 metros quadrados. Provavelmente eles nos rotulariam como latifundiários, haha.”
Bom, sem necessariamente promover uma “caça às bruxas”, poderíamos considerar uma imoralidade. Infelizmente, a realidade do Brasil não é muito bonito: a maioria das pessoas vive em condições precárias, enfrentando humilhação diária e uma expectativa de vida muito mais baixa do que deveria ser, caso tivessem uma vida digna. Ainda há quem ache inadequado quando alguém aponta que é problemático ter casas ao lado de estações de metrô em uma região que já possui uma linha desde 1960?
“Este é um ambiente online onde qualquer sutileza e complexidade são evitadas, portanto, não vale a pena se envolver.”
Concordamos, tanto que suas objeções são prova disso. Pelo teor delas, é nítida a falta de preocupação, tanto com acesso à moradia, quanto com melhor funcionamento mercadológico. No fundo, não passou de um assunto pessoal, descrito como viesse de um ator mercadologicamente neutro. Nada mais distante da realidade.
Infraestruturas de circulação
O trânsito vai piorar (1)
“As principais vias de São Paulo estão congestionadas, o que gera preocupações. Infelizmente, o novo plano diretor tende a tornar mais grave essa situação, negligenciando a importância de promover soluções para o bem-estar coletivo e fortalecer o sistema de transporte público. A falta de prioridade dada a essas questões demonstra uma falta de visão e compromisso com a melhoria da mobilidade urbana.”
O PDE (Plano Diretor Estratégico) revisado não elimina o transporte público. Desde o governo de João Doria (na altura, um quadro do PSDB), os investimentos municipais voltados ao sistema de ônibus caíram. Há anos, o governo estadual tem prejudicado o sistema metroferroviário, avançando com privatizações lesivas (vide custeio da Linha 4-Amarela e amadorismo na operação das linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda).
A verdade é mais clara para nós: uma galera parece tentar definir a capacidade de adensamento a partir do fluidez de veículos. Não precisamos nem dizer o quanto isso é errado. E lembramos: quem opta pelo carro tem mais é que ficar parado mesmo. Não precisamos (e não deveríamos) reduzir densidade para proteger essa turma.
E como já dissemos em outras oportunidades: a mensagem de que não pode prédio alto a 1 km de distância de metrô, infelizmente, implica na necessidade do automóvel. Não concordamos, mas é isso que implica na prática.
“Todo mundo quer poder morar numa casa, ou num bairro que tenha uma verticalização não tão grande”, assim começa a fala de Paula Santoro, uma das representantes da intelectualidade da Universidade de São Paulo (USP). A construção de prédios em vez de casas vai desconfigurar bairros, destruir quadras e, por consequência, modos de vida. O alerta é da coordenadora do LabCidade, @paulafsantoro. Em entrevista na @CBNoficial , Paula detalhou os efeitos nefastos do PL da revisão do Plano Diretor.
Finalmente, como abordamos em outra objeção, existem dinâmicas regionais ignoradas, incentivando possuir carro.
O trânsito vai piorar (2)
Fala da professora Paula Santoro da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP (Universidade de São Paulo), presente em reportagem do G1.
“‘Eu vou morar perto do Metrô, não vou ter carro’ […] Isso ajuda a cidade no congestionamento e em termos de poluição e qualidade do ar, saúde como um todo. […] Agora, essa verticalização vai poder acontecer em qualquer lugar, ou seja, reforçando os velhos modos individuais, motorizados, que estruturaram a nossa cidade dos carros”.
A objeção acima é apenas mais um exemplar do grande malabarismo retórico permeou a oposição reacionária ao PDE (Plano Diretor Estratégico): a noção de “perto” ou “longe” de metrô.
Tem uma pegadinha: antes, distâncias que eram tratadas como “longe” (700 metros, por exemplo) não desincentivavam uso do carro. Com a revisão, se tornaram “perto” e são criticadas pelo mesmo motivo.
Claro que mais vagas podem ser construídas agora, mas a regra já predominava na cidade, mesmo para 700, 800 ou 900 metros, distâncias perfeitamente caminháveis e próximas de uma estação de metrô. Infelizmente, o enfraquecimento aos já frágeis desincentivos à propriedade de um automóvel são um subproduto da defesa do “longe” e de bairros centrais de mansões e casarões com ’n’ vagas.
Não é engraçado como a gente pode fazer uma oposição extremamente tacanha, com discursos aparecendo em '’n’' veículos da imprensa, contaminando extratos mais vulneráveis, etc? É, literalmente, ser do contra, não construir uma alternativa política diferente.
Moral da história: buscar princípios técnicos e alicerçados em aspectos tangíveis do tecido (como infraestrutura em operação) reduz a margem para incoerência discursiva.
Se a estação não ficar a poucos metros, não é útil
A reportagem do Bom Dia SP, na realidade, oferece um combo de problemas, mas o que mais se destaca é uma das falas do repórter, que opina que aumentar a oferta de edifícios a 1 km de uma estação “não ajuda tanto” quem precisa de transporte público.
Infelizmente, o repórter não se dá por satisfeito e espalha ainda mais objeções em relação aos Eixos de Transformação dentro da revisão:
- Não vai bater luz solar;
- A cobertura vegetal será suprimida;
- A população de baixa renda vai acessar menos os entornos (como se já acessasse os melhores hoje sem precisar ocupar prédio, favelizar, etc, correndo inúmeros riscos);
- Vai “levar trânsito para dentro dos bairros” (sim, pois o entorno das estações, ainda mais no Centro Expandido, são ermos e idênticos aos subúrbios de milionários atendidos por trens suburbanos nos Estados Unidos).
Consideramos a leitura de mercado problemática, herdando os problemas que eu já havíamos identificado nos “três pês do apocalipse” (Pinheiros, Perdizes e Pacaembu) em audiências marcadas por racismo, xenofobia e preconceito (nem sempre velados), com anuência da esquerda e intelectuais — como foi o caso no circo dos horrores promovido pela Pró-Pinheiros, cujo vídeo pode ser encontrado na seção “Instrumentação da pobreza para rejeitar unidades menores e mais acessíveis (3)”. Em relação à leitura de mercado, destacamos quatro pontos problemáticos:
- A leitura parece achar que não vai criar uma pressão péssima para os preços ao adotar raios igualmente minúsculos em todas as áreas, periféricas ou centrais
- Parece também achar que as áreas centrais, diante da escassez artificial, não vão ser usadas estrategicamente para produção de empreendimentos compatíveis com a renda e padrões de consumo predominantes
- Parece existir uma ilusão fortíssima de que, ao se estimular tal escassez, o mercado vai automaticamente incorporar na periferia, de forma homogênea
- Finalmente (e este é o ponto mais forte e encontrado em militantes reacionários dos três pês), utilizar réguas diferentes para o que significa a atuação dos incorporadores, de acordo com a região, de forma a tratá-la como positiva na periferia e negativa no Centro Expandido.
Finalmente, as falas dos moradores ligados à Vila Prudente e/ou à Vila Zelina são incompatíveis com a vida numa mancha urbana que abrange mais de 30 municípios. Quem quer preservar caráter de vila a poucos minutos de metrô da Avenida Paulista, deveria se mudar. Não é racional.
Já adiantamos que tentar congelar a Vila Prudente é muito mais autoritário do que qualquer provocação envolvendo presença de metrô e morfologia predominante. Como o Raul Juste Lores apontou em seu vídeo “BAIRROS SATURADOS - Plano Diretor PARTE 2: O jogo de empurra pra onde São Paulo vai crescer”, temos uma série de urbanistas com falas análogas às de gente do Judiciário que acha que quase R$ 40 mil de salário é pouco.
O DOTS (Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável) está sob ameaça
“Qual seria a maneira de tornar São Paulo uma cidade menos desigual, onde seja possível morar a 15 minutos do local de trabalho e promover um equilíbrio ambiental? Uma das estratégias é o Desenvolvimento Urbano Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS), que corre o risco de ser comprometido.”
Qual seria a maneira? Bom, DOT (ou DOTS, se quisermos reforçar a ideia de sustentabilidade), com certeza, é uma delas, mas não é porque o potencial de verticalização aumentou, que DOT deixa de ser possível.
Na verdade, o que fica parecendo é que certas figuras ligadas a institutos que reúnem arquitetos e urbanistas, infelizmente, desprezam a ideia de DOT, tanto que, desde a gestão Haddad, pouco falaram sobre transporte público. Está cristalizado.
É otimista demais achar que um PDE (Plano Diretor Estratégico) pré-revisão, que permitia verticalizar lotes a aproximadamente 500 metros de uma estação, derrubando o gabarito para 8 ou 16 andares depois, é exatamente sinônimo de DOT e cidade de 15 minutos, ou mesmo de inclusão. Com tamanha restrição, por melhor que seja a intenção, é difícil não resultar em elitização.
Obviamente, o COMMU crê que toda a sociedade precisa reforçar a importância de um bom desenvolvimento orientado ao transporte. Neste sentido, podem entrar os planos de bairros e os esquecidos planos regionais das subprefeituras (entregues no final da gestão Haddad). O que não tem cabimento, apesar de ser outro vício da última revisão, é falar em “projeto” eufemisticamente, no sentido de dificultar incorporar.
Vamos falar de projeto a sério, então! Vamos falar de drenagem. Vamos falar de monitoramento. Vamos falar de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) Progressivo. Vamos falar da CPTM, do Metrô (Companhia do Metropolitano de São Paulo), da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos), da SPTrans (São Paulo Transporte). Vamos falar dos arranjos locais de acúmulo de capital, para sabermos quem tem ou não dinheiro para empreender.
O DOT não é uma estratégia baseada apenas em parâmetros como CA (coeficiente de aproveitamento), TO (taxa de ocupação) e gabarito. E, principalmente, é irônico falar em “cidade de 15 minutos”, quando último plano diretor atual claramente não respeitava uma isócrona de 15 minutos, o que se traduzia num solo altamente verticalizável artificialmente escasso.
Outra coisa: DOT não se faz só com transporte de massa de alta capacidade, por exemplo, temos exemplos nos EUA com bondes que são muito interessantes, como em Portland, OR, San Jose, CA e Charlotte, NC. Por aqui, temos uma oferta elevada de ônibus em alguns locais, como o “miolo” do Tatuapé (porção sul das estações Carrão e Tatuapé), que merecia maior atenção.
Não é porque não está do lado do metrô, que não houve DOT. Claro que houve. O melhor do tecido de comércio e serviços está em ruas atendidas por linhas como 3763-10, 372U-10 e 3762-10. O que podemos fazer para aumentar as pessoas que podem morar e abrir negócios ali?
Por que faz sentido restringir mais? Por que as restrições não são projetadas por intelectuais e associações, enquanto o aumento de oferta é tratado como destruidor? Por que os aspectos especulativos não estão sendo combatidos com aumento de oferta e instrumentos tributários?
De verdade, a conversa não se encaixa. Como alguém pode querer uma cidade de 15 minutos, mas admitir um formato de ocupação que não otimiza a exploração da razão entre solo ocupado e unidades ocupáveis (e não monitora a ociosidade), ignorar o papel dos ônibus e ignorar o tecido já consolidado?
Por que temos medo de contiguidade, afinal? Quem disse que a tal “cidade de 15 minutos”, na realidade, não pode ser composta por vários núcleos num continuum urbanizado, num tecido linear (como ao longo de uma linha da CPTM)? Por que DOT só aparece na escala do lote ou da quadra?
DOT se faz em escala metropolitana. Deveria ser lógico que DOT vai abranger uma parte gigantesca de São Paulo, pois a mancha ocupada tem mais outros 10 milhões de habitantes que não moram na capital. E isso já deveria ser autoexplicativo, para não falarmos de outras manchas vizinhas, no interior e litoral do estado.
Quanto maior o DOT na capital, que é o local com maior densidade de linhas e maior sofisticação no sistema de transporte, melhor. Sem alarmismo, podemos falar em limitação do uso do carro (inclusive dissuadindo o uso por acalmamento de tráfego e limitações geométricas) e drenagem.
Existe uma ideia propagada por alguns de que o mercado vai destruir qualquer chance de moradia mais acessível, enquanto, ao mesmo tempo, não discutem quais são os fatores que estimulam a captura de unidades para especulação e investimento, independente do arranjo adotado. Estes atores não disputaram recursos do Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano, subaproveitado) e não exigiram que a prefeitura fizesse HIS (Habitação de Interesse Social). Trata-se de um impressionante nível de negligência para uma cidade que, até 2019, ainda tinha milhões de m² em outros municípios (o finado prefeito Bruno Covas transferiu mais de 5 km² para Itapevi, Carapicuíba, entre outros municípios), após décadas de negligência.
Enfim, precisamos de cautela para não darmos continuidade ao esvaziamento terminológico que já prejudicou o péssimo debate em curso.
Comércio e serviços
Bares e restaurantes em casas e sobrados serão extintos
“Aconselho a todos que frequentem bares e restaurantes que não estejam localizados em arranha-céus a aproveitar essas visitas como se fossem as últimas.”
Achamos importante discutir permanência do comércio local, mas as vaidades envolvidas na revisão do PDE (Plano Diretor Estratégico) impressionam. Parece até que ninguém está nem aí com péssimo e asfixiado mercado habitacional. Desde que o “bar do Zé” seja preservado, não tem problema m² caro e mais pobre morrendo soterrado, não é mesmo?
Absurdo. Mais uma vez, a incapacidade de discutir a verticalização descamba para um “tombamento afetivo” da cidade. Pessoas morrem, negócios quebram, propriedades são adquiridas e vendidas. O tecido muda. Não existe vida urbana sem saudades. E saudosismo pode aquecer ou corroer a alma.
Precisa ficar claro que a cidade é um jogo de soma zero, porque não tem como ter sobrado com bar do Zé e prédio novo no mesmo terreno, ao mesmo tempo. Queremos que o Zé possa ficar, mas não é tão simples assim. Não seria melhor se buscássemos discutir como garantir a perenidade do comércio local?
Gostaríamos que as pessoas entendessem que, quando tentam travar a paisagem nas áreas centrais, minam o acesso não só ali, mas em outros lugares muito, muito, muito mais distantes.
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