Verticalização em São Paulo. O acerto covarde de Haddad e o erro grosseiro de Marta Suplicy

Por Caio César | 20/03/2024 | 10 min.

Legenda: Edifícios de baixo gabarito na Vila Mariana, a poucos minutos a pé da Estação Ana Rosa, contrastam com verticalização realizada antes do Plano Diretor Estratégico da gestão Fernando Haddad
Como sempre, temas complexos são difíceis de serem discutidos em redes sociais, porque a sistematização das publicações, comentários e interações dificulta diálogos produtivos e perenes. Vamos eternizar mais uma discussão que revela o interminável elitismo envolvendo bairros como Pinheiros

Índice


O artigo em questão é uma adaptação de uma resposta que seria redigida numa publicação no Instagram, contra-argumentando com a senhora Nara Kassinoff, que se apresenta como fotógrafa de rua, designer gráfica e ourives.

Legenda: Perfil de Nara Kassinoff no Instagram em 20/03/2024

Já não fazia muito sentido manter a discussão por lá, tanto pelo tom adotado quanto pela importância do tema, entretanto, como a senhora Kassinoff optou por enviar um “textão malcriado” e limitar as menções, adaptar a resposta na forma de um artigo acabou sendo inevitável. Após ser informada da publicação deste artigo, ela também bloqueou o perfil do Coletivo. Não é maravilhoso como alguns ricos são simpáticos e abertos ao diálogo?

Legenda: Os argumentos originais de Nara Kassinoff em 19/03/2024

Obviamente, a proposta deste artigo não é fazer uma comparação detalhada entre dois marcos regulatórios. Trata-se, mais uma vez, de um exercício de diálogo dentro das capacidades de um trabalhador que busca se intelectualizar e se politizar. Para uma comparação detalhada, as pessoas interessadas deverão entrar em contato para a discussão de um orçamento, iniciando a partir de R$ 50 mil.

Utilizaremos o termo ordenamento para se referir às duas principais legislações urbanas da capital paulista: o Plano Diretor Estratégico (que chamaremos informalmente de “plano”) e a Lei de Uso e Ocupação do Solo (que chamaremos informalmente de “zoneamento”).


Argumentos apresentados

Cada uma das seções a seguir é um ponto ou argumento apresentado pela interlocutora citada no Prólogo. Os parágrafos seguintes são a contra-argumentação apresentada pelo Coletivo por meio deste artigo.

O COMMU “passa pano” para o plano de 2014, porque considera o de 2002 muito pior

Em primeiro lugar, não se trata de “passar pano”, mas de avaliar objetivamente a qualidade do ordenamento.

Dizer que plano 2014 foi muito melhor é extremamente diferente de afirmar que foi perfeito. E foi muito melhor justamente porque reduziu a verticalização difusa e estimulou a oferta de imóveis no segmento de mercado popular, alimentando a hipótese de ser sido um importante freio na alta de preços do mercado imobiliário paulistano.

Compreendemos que, para a população endinheirada (ou uma parte dela), que reside em bairros centrais, a comparação talvez não seja tão trivial, talvez porque esta população não esteja tão exposta ao mercado quanto julga estar. Suspeitamos que muitos dos habitantes da capital e sua região metropolitana, que gastam no mínimo 3 horas por dia no transporte público e precisam de um primeiro imóvel próprio para sair do aluguel, estejam muito mais expostos e colhendo benefícios do plano.

O primeiro e mais óbvio benefício é a redução da contaminação do mercado imobiliário dos bairros localizados fora do Centro Expandido, que passa a ser menos interessante para a verticalização de elevado gabarito (ou seja, de edifícios com 40 ou mais andares) e, dotado de flexibilização, passa a receber empreendimentos que exigem menor empenho de capital e técnica, limitados a oito andares, sem exigência de garagem (independente de sua relação com o transporte público) e sem exigência de fachada ativa.

Os pequenos edifícios descritos acima, que abrigam unidades entre R$ 150 mil e 300 mil em bairros com bons indicadores, como Vila Carrão, Vila Antonina e Vila Formosa, são quase revolucionários e reforçam o efeito de estancamento da alta de preços. Para efeito de comparação, em 19/03/2024, mesmo dia em que a discussão foi protagonizada, o Diário de Suzano publicou um informe publicitário acerca de um empreendimento imobiliário de 57 m², a 20 minutos de ônibus da Estação de Suzano (sem integração tarifária), com precificação unitária mínima de R$ 230 mil. Em comparação com os imóveis de baixo gabarito erguidos em alguns bairros da Zona Leste, numa relação de dependência econômica envolvendo o Centro Expandido, os novos imóveis de mercado popular pós-plano de 2014 parecem apresentar uma melhor relação × benefício.

Não podemos esquecer como a verticalização era difusa e mirava apenas nas classes mais altas antes e durante o plano de 2002. Na Zona Leste, por exemplo, muitos condomínios-clubes imensos foram feitos durante a gestão Marta Suplicy (PT). Uma rápida visita à rua Monte Serrat e seu entorno, entre as regiões do Tatuapé e do Jardim Anália Franco, é didática.

Naquela altura, o transporte público passava por transformações profundas: o sistema de ônibus municipais estava sendo reerguido (parte do projeto Interligado, que resultou na implantação do Bilhete Único), enquanto a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, sob responsabilidade do governo do estado), vivia sua primeira década mais tranquila depois dos desastrosos anos 1990. Em meio a tais transformações, a classe trabalhadora, alijada de acessar tais produtos imobiliários, ainda viajava pendurada nas portas, o que criava um contraste avassalador com o desenvolvimento imobiliário predominante.

Dentro do Coletivo, ninguém nunca manifestou saudades daquele plano. Será que estamos em lados muito diferentes da cidade?

Vale lembrar ainda que, antes do plano de 2014, imóvel popular era sinônimo do PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida). Como já criticado por nomes como Ermínia Maricato (veja aqui, aqui e aqui), o PMCMV estimulou produtos imobiliários de baixa qualidade e baixa urbanidade, erguidos nos confins da cidade (sendo esta cidade São Paulo ou qualquer outra da região metropolitana).


O plano de 2002 era superior, porque não adotou a falsa inovação de “imóveis populares próximos aos corredores de transporte”

Diante do reacionarismo, à esquerda e à direita, que temos tentado combater, sim, o plano de 2014 foi muito inovador. No plano de 2002, a maior cidade do país continuava virando as costas para o sistema de trilhos, com resultados catastróficos.

A chave para entender o tipo de argumento mobilizado é desmontar o token “popular”: quando Pinheiros é hostil até para famílias de classe média com renda entre R$ 5 mil e R$ 10 mil mensais, como esperar preços mais baixos? Com uma oferta artificialmente restrita para não ofender a beautiful people que deseja morar em São Paulo, explorar a mão de obra de sua vasta periferia, mas se encastelar em bairros com poucos prédios, mas muitos empregos e estações de metrô, como esperar resultados diferentes?


O artigo 174 do zoneamento de 2016, abriu brecha para unidades maiores, mais caras e com mais vagas

Para referência, eis o artigo:

Art. 174. Durante o período de 3 (três) anos após a entrada em vigor desta lei, aplicam-se os seguintes incentivos na zona ZEU:

I - a cota parte máxima de terreno por unidade residencial será igual a 30m²/un (trinta metros quadrados por unidade residencial);

II - no disposto na alínea “a” do inciso I do art. 62 desta lei, fica admitida 1 (uma) vaga a cada 60m² (sessenta metros quadrados) de área construída computável da unidade.

Parágrafo único. A vigência dos incentivos previstos neste artigo será improrrogável.

Aqui temos uma contradição que reforça o verniz tokenizador.

Ora, o plano anterior era ainda pior no estímulo a imóveis grandes, caros e com muitas vagas!

Foi graças ao plano de 2002 que algumas construtoras fizeram complexos com 3, 4, 5 ou mais vagas por apartamento. Alguns apartamentos, mesmo em localizações privilegiadas, foram formatados como verdadeiras mansões suspensas.

Frise-se: o plano de 2002 facilitava totalmente isso, mesmo ao lado de estações de metrô, que pouco importavam naquele marco regulatório.

O artigo citado é, nada mais, nada menos, produto de uma série de posturas questionáveis, tais como…

  • Defesa da verticalização difusa, buscando reduzir incomodidades em áreas mais desejadas ao estimular a pulverização dos produtos numa área muito maior, com a manutenção ou elevação dos preços;
  • Defesa da expansão da mancha urbana, muitas vezes, sob o pretexto de uma descentralização inclusiva e sustentável;
  • Defesa ou vista grossa do estímulo à urbanização informal;
  • Instrumentação da população com maior dificuldade de acesso ao mercado imobiliário para preservar o caráter elitista e segregacionista dos bairros centrais.

Tais posturas atacam um plano mais progressista por achar que ele “verticaliza demais” e “destrói tudo”. Ao adotá-las, há a exigência de uma cidade rodoviarista, mais espalhada, com mais carros e mais vagas.

O impacto pode parecer, a princípio, menos localizado, mas na prática, ele é muito maior e mais perverso.


A defesa do ordenamento de 2014 é produto de um endeusamento doentio de políticos e partidos, que não merecem “passada de pano”

O COMMU, ao longo de uma década de trajetória, nunca endeusou indivíduos e/ou partidos, pelo contrário. Nossa produção textual expõe o drama de uma representação inadequada.

O COMMU não é adequadamente representado nem pela esquerda, nem pela direita. Na verdade, nossos membros mais ativos revelam votar na esquerda esperando posturas progressistas, mas o sentimento que predomina em nossas discussões internas é o de frustração por traição.


Pinheiros era um bairro incrível, mas está sendo destruído, situação agravada pela leniência com o plano de 2014

Pinheiros era incrível para quem não limpava as privadas e não servia os cafés saindo das profundezas de Itaquaquecetuba. Aquele “bairro incrível” não passava de uma irracionalidade urbana. Não há café hipster, por melhor que seja, que demande uma densidade tão baixa.

O ordenamento desenvolvido e promulgado durante a gestão Haddad (PT) foi tímido demais, deixando um legado de covardia, apesar dos elogios pela ONU-Habitat. A grita sobre uma verticalização excessiva expõe uma pequena elite urbana, que reside a menos de 600 metros de uma estação, desfruta de poucas quadras e resume uma cidade a um punhado de novos edifícios em obras.

Legenda: Densidade demográfica por subprefeitura, segundo dados do Censo Demográfico 2010, conforme página secretarial descontinuada após dezembro de 2023

A densidade do distrito de Pinheiros (8.171 habitantes/km²), que trataremos como sinônimo de bairro, já que a capital é suficientemente incompetente para não ter delimitado nenhum bairro até hoje, é inferior aos distritos de Vila Formosa (12.811 habitantes/km²), Aricanduva (13.579 habitantes/km²), Rio Pequeno (12.212 habitantes/km²), Capão Redondo (19.759 habitantes/km²), Campo Limpo (16.513 habitantes/km²), Cidade Ademar (22.223 habitantes/km²), Cidade Tiradentes (14.100 habitantes/km²), Ermelino Matarazzo (13.059 habitantes/km²), Água Rasa (12.313 habitantes/km²), Vila Medeiros (16.873 habitantes/km²), Vila Mariana (15.173 habitantes/km²) e Vila Prudente (10.529 habitantes/km²), para citar alguns arbitrariamente.

Legenda: As extremamente limitadas áreas de influência da infraestrutura de transporte público, recuperadas no âmbito da tentativa de revisão do Plano Diretor Estratégico pela atual gestão, por meio de um diagnóstico inicial

Uma pequena elite urbana que, sem perceber, transformou um bairro numa espécie de condomínio sem guarita, reeditando os subúrbios racistas de Nova Iorque e Nova Jérsei naquilo que é o entorno imediato das novas centralidades da capital paulista, ou seja, o entorno de avenidas como a Bridageiro Faria Lima, produto de uma operação urbana malufista.


Nenhum prefeito deveria ser aplaudido, a menos que estrangule o setor imobiliário

Trata-se, lamentavelmente, da cooptação de um discurso anti-capitalista para promover ganhos de monopólio e regulação mercadológica com efeitos deletérios. Estrangular o setor imobiliário pressupõe o congelamento de Pinheiros tal como está, ou seja, a manutenção do nível de oferta de unidades em detrimento da demanda. Nada mais capitalista. Nada mais perverso.

Queremos mais favelas, mais loteamentos clandestinos, não raramente, implantados na vizinhança metropolitana, em municípios mais pobres e institucionalmente mais frágeis?

Queremos mais gente morando no interior e saturando rodovias que já foram duplicadas, triplicadas, quadruplicadas?

Será que as pessoas evaporam e não precisam morar? Será que as famílias só encolhem?

Será que ninguém percebe o tamanho da área ocupada por condomínios fechados no entorno da capital? Ninguém nunca ouviu falar de Alphaville, Tamboré, Itahyê, Arujazinho, Aruã, Bella Cittá, ou Swiss Park? A expansão de Mogi das Cruzes e Santana da Parnaíba, recebendo transplantados da capital, continua ocorrendo em benefício de Pinheiros, que não arcará com o prejuízo.

Legenda: Diferentes anúncios exibidos para a conta do Coletivo no Instagram, em comum, ideais de bucolismo e falsa e exagerada proximidade com a capital: “saia da metrópole”, “apenas 1h40 de São Paulo”, “40 min. Pinheiros-SP”, “somente a 80 km de São Paulo”, “pertinho de São Paulo”, “a menos de 2h de SP”, “50 minutos de SP”, “a apenas 40 min de São Paulo”. Anúncios foram criticados em artigo de novembro de 2023

No mesmo Instagram, será que ninguém além de nós recebe uma avalanche de anúncios prometendo “paz e sossego” a ‘x’ minutos da capital, num constante exercício de “pega-trouxa”?

Mais do que nunca, precisamos parar de tratar Pinheiros como condomínio fechado e ignorar os efeitos para o resto da população de São Paulo e de mais de 30 municípios vizinhos (considerando apenas a Região Metropolitana de São Paulo).




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