Oposição à concessão da Raposo Tavares: metrô não é bala de prata

Por Caio César | 02/06/2024 | 7 min.

Legenda: Trecho da rodovia compreendido entre o Rodoanel Mário Covas e o complexo de três loteamentos comercializado como Terra Nova Granja Vianna
Mais uma vez, temas metropolitanos são afetados pelo oportunismo de associações paulistanas que tentam preservar privilégios e hábitos questionáveis. Preservação esta que depende de conivência do tecido político com hábitos e formas de vida profundamente insustentáveis e segregacionistas

Este artigo é uma espécie de resposta ao texto “A nova Raposo Tavares e o velho urbanismo”, publicado na coluna de Mauro Calliari no jornal Folha de São Paulo.

A questão da rodovia Raposo Tavares, um dos assuntos do momento em virtude do Lote Nova Raposo do Programa de Parcerias de Investimentos do Estado de São Paulo (PPI-SP) possui várias camadas e, infelizmente, que nossos intelectuais não estão preparados para o monstro que vai surgir no espelho.

Em primeiro lugar, é nítida a existência de uma quantidade considerável de intelectuais que defende a Granja Viana. Sim, eles podem não fazer isso diretamente, nem fazer isso quando desejam tratar a Granja como saco de pancadas para favorecer bairros tradicionais (e, consequentemente, suas famílias e seus sobrenomes), mas o fazem quando defendem a morfologia que ali predomina.

Em segundo lugar, nossa sociedade (não só a paulistana, mas a paulista em geral) tem uma noção quase religiosa de que tráfego dentro da cidade não pode ter pedágio. Ora, quem inventou que não pode?

Claro, pedágio é, sim, uma barreira à circulação de pessoas e mercadorias, mas também é um elemento que disciplina o uso do automóvel. Não podemos admitir uma discussão rasa e dicotômica. A conivência política do presente não pode condenar a construção política do futuro.

E já que este artigo começa falando em morfologia, ou seja, a forma do tecido urbano, precisamos entender que uma externalidade da suburbanização é o parasitismo: tecidos de menor densidade são mais deseconômicos e custam mais para serem mantidos. Além disso, tendem a fazer parte de relações funcionais muito tóxicas, com movimentos pendulares, padrões de uso monofuncionais que exigem deslocamentos de carro, etc.

Em terceiro lugar, é perceptível pelo teor da opinião que a perspectiva é paulistana. Fica a dúvida, caro Mauro Calliari, apenas a prefeitura de São Paulo precisa se manifestar? O que dizer de Vargem Grande Paulista, que tem o centro cortado ao meio pela rodovia?

Evidentemente, Vargem Grande Paulista é minúscula em comparação com a capital, mas é uma provocação que precisa ser feita, porque uma parcela dos paulistanos têm mania de achar que a capital é, de alguma maneira, portadora de um lugar especial nos debates, principalmente quando outros veículos jornalísticos oferecem indícios de sobreposição de atores e organizações, além de protagonismo exacerbado de alguns poucos bairros.

Na prática, a visão não é exatamente paulistana, mas paulistana dentro do contexto do Butantã e alguns outros bairros de menor projeção.

Mauro também diz que o projeto só gerou reações depois de uma matéria no Estadão. Há que se discordar. Reações ligadas à “mídia regional nanica” podem ser facilmente rastreadas, o que nos leva a outra provocação: a mídia regional nanica não é a mídia lida pelos intelectuais paulistanos.

A reação que vem dessa mídia também envolve a população em redes sociais, não necessariamente gente endinheirada da “AMXPTO” (em alusão às associações de moradores que sempre pululam na hora de defender privilégios).

Em quarto lugar, não fica claro por quais motivos o Plano Diretor Estratégico da capital deveria contemplar a Raposo Tavares. Ademais, se existe uma questão central envolvendo rodovias, por que apenas a Raposo Tavares suscitou uma opinião? Seria por afetar uma teia de relações que esbarra no Butantã e atores bem conhecidos dos bastidores da política urbana paulistana, com os quais o autor provavelmente se relaciona?

O doutor Calliari poderia alegar que a coluna tem limite de caracteres, mas a vida não se resume à coluna.

Em quinto lugar, o autor está correto ao apontar a ausência de considerações sobre transporte público, regra problemática em todas as concessões. Nós, paulistas, tivemos outros lotes imensos de rodovias e continuamos a ter outras concessões para além da Raposo. Por que ninguém parece querer discutir isso mais profundamente? Por exemplo, esse tema não parece ter entrado na disputa pelo governo do estado...

Em sexto lugar, quem disse que faz sentido metrô? Na hora de fazer subúrbio, todo mundo bate palma, depois, quando o tecido é imprestável para um transporte caro e de maior capacidade, reclamam. Como levar metrô para atender um dos principais pontos de interesse, a Granja?

Por uma questão de mérito em termos de urbanização, faz muito mais sentido atender Alphaville primeiro. Pelo menos, Yojiro Takaoka e Renato de Albuquerque, idealizadores do que hoje conhecemos por Alphaville, tiveram a decência de fazer um núcleo caminhável — na verdade, mais de um, porque existem outros centros de apoio com alguma dose de razoabilidade.

A Granja, senhoras e senhores, ah, a Granja… ela é muito mais precária.

É chegado o momento em que nós somos chamados a disputar a prioridade das linhas. Talvez seja muito melhor priorizar outras conexões: fazer a linha em U em Alphaville (promessa tão empoeirada, que alguns dos mapas que temos aqui pré-datam o Parque Shopping), fazer a ligação perimetral entre ABC e Guarulhos da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), etc.

Legenda: Exercício proposto pelo Coletivo no Instagram para ilustrar a assimetria de poder envolvendo a rodovia e determinadas periferias ricas e pobres: “mesmo tecnicamente coerentes, não temos força política”

Em sétimo lugar, a opinião publicada na Folha parece adotar uma premissa equivocada envolvendo a futura Linha 22-Marrom:


Será que ela não poderia aliviar parte considerável do trânsito que se pretende combater agora? Não seria o caso de apressar os estudos para poder fazer uma escolha mais racional?

Para começar, estudo não se apressa. Pressa é sinônimo de indução de erro quando estamos falando de planejamento. Teria sido mais elegante falar em priorização, como este artigo-resposta está fazendo agora. Em todo caso, soa ingênuo esboçar qualquer esperança de que a presença da futura Linha 22 eliminará o trânsito.

Aqui, surge uma questão psicológica e de paisagem, fora uma série de outros problemas que estão muito além do escopo de uma “linhazinha” até Cotia. Continuaremos observando um trânsito pesado, simplesmente porque admitimos uma urbanização em escala regional que induz o uso do carro, não existindo alternativa estrutural.

É fato que, no caso da Linha 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno), foram feitas melhorias substanciais desde a nefasta ditadura militar, contudo, o que estamos vendo na Rodovia [ditador] Castello Branco, que é, em parte, alternativa à Raposo (uma muito melhor em vários contextos, diga-se de passagem) e paralela à Linha 8? Mais pistas e obras de arte.

Em direção à extremidade oposta da macrometrópole, no caso do Alto Tietê (Sub-região Leste da Região Metropolitana de São Paulo), nós temos mais duas rodovias correndo em paralelo, uma a norte (Rodovia Presidente Dutra), outra a sul (Rodovia Ayrton Senna, ex-Rodovia dos Trabalhadores) e, mesmo com o aumento formidável da oferta das linhas 11 e 12 nas últimas décadas, continuamos a observar alargamentos das rodovias e outras obras relacionadas com a expansão da capacidade de tráfego.

Reitera-se, mais uma vez, a noção de que colunas de opinião possuem limites de caracteres, mas é preciso fazer os apontamentos que estão sendo feitos neste texto, porque do contrário, trilho vira bala de prata, negando experiências óbvias.

Em oitavo (e último) lugar, é compreensível a preocupação final do autor com a paisagem dos bairros, mas, de novo, eis o problema de plantar subúrbio. Quando o subúrbio quer acessar o organismo que ele parasita, começam a surgir intervenções viárias que detonam com a escala dos bairros na área de contorno.

E é aí que a opinião termina de maneira lamentável: o colunista nem se preocupa em esboçar uma proposta, apenas jogando platitudes fáceis de serem digeridas. Sim, é óbvio que deveríamos considerar Rodoanel, ônibus e transporte sobre trilhos, e disso derivamos...?

Não diz! Qual a proposta, encarecido doutor Mauro?

Parece que temos um grande conjunto de intelectuais que só luta pelo status quo. Nenhuma palavra estaria sendo dita se o atual governador, o truculento Tarcísio de Freitas (Republicanos), na sua insaciável privataria, não tivesse mirado na rodovia Raposo Tavares.




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