Entre o marginal e o excêntrico, as dores e agonias de viver os trens da CPTM

Por Caio César | 04/06/2024 | 10 min.

Legenda: Estação São Caetano do Sul em 27/03/2024; trem alinhado com destino à Estação Rio Grande da Serra
A ideia de que o Trem Metropolitano é pouco relevante, expressada em sua forma máxima por contratos de desestatização garantistas e relapsos, com pouco ou nenhum escrutínio por diferentes setores da sociedade, não ameaçará apenas os mais pobres, mas também as classes médias, empobrecendo as relações funcionais entre São Paulo e dezenas de municípios

Índice


Em regozijo aos 32 anos da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), completados em 28 de maio de 2024, o COMMU (Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana) orgulhosamente publica este artigo. Dividido em duas partes, o texto a seguir transita brevemente pelos extremos encontrados no Trem Metropolitano, propondo uma reflexão sobre sua importância. Mais uma vez, o Coletivo reforça seu compromisso com o Trem Metropolitano, sobretudo num período tão sombrio, que ameaça deteriorar uma das poucas pontes capaz de transpor grandes abismos socioeconômicos, levando eventualmente a crises e colapsos.


Parte 1: desprezo e ingenuidade

Em um exercício passado, este Coletivo fez um “passeio” — na prática, um levantamento de dados com um toque bastante pessoal — por Mogi das Cruzes, Barueri, Santana de Parnaíba e Santo André. Naquele momento, o artigo publicado flertou com uma certa dose de excentricidade.

Trevas no horizonte E se Tarcísio de Freitas (Rep), atual governador do estado de São Paulo, conseguir avançar com o rolo compressor? E se todas as linhas do METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo) e CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) forem privatizadas? E se a privatização selar um nível de serviço degradado para toda a malha, similar aquele das linhas 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) e 9-Esmeralda (Osasco-Mendes·Vila Natal)?

Na verdade, aquela excentricidade toda, foi, por um lado, produto do contraste entre estilos de vida de classe média que não oferecem a simbologia e expressão dignas da intelectualidade bem-nascida e enraizada no Centro Expandido; e, por outro lado, um gesto de carinho de difícil compreensão, que associa o futuro de uma vida ao bom funcionamento de um sistema de trens em constante crise de identidade.

Com a intransigência do atual governo paulista, mais uma vez, fica a sensação de que decisões beirando a excentricidade não serão suficientes para romper com o caráter marginal que assola a CPTM e as pessoas que dela dependem, dado que, ainda assim, requerem considerável musculatura financeira e múltiplas camadas de privilégios.

Com o atual governador, Tarcísio de Freitas (Republicanos), o excêntrico e o marginal são apenas faces da mesma moeda: um transporte público que não é feito para as cidades, e cuja dinâmica de funcionamento está fortemente apoiada nas demandas do mercado de trabalho. Mesmo em domínio tucano, parecia existir um mínimo de respeito com as classes médias que insistiam numa convivência consciente com os vizinhos dos primeiros andares da pirâmide.

O verniz de cordialidade entre “pobres e remediados”, entretanto, parece ter sucumbido à voracidade da ignorância bolsonarista, numa perigosa síndrome que mescla poder, ignorância e uma visão quase metafísica dos papéis do Estado e da iniciativa privada, pouco afeita a pragmatismo e parcimônia, ainda que em patamares mínimos.

Colocar a CPTM à beira de um precipício repleto de espinhos contratuais e alavancas para o desinvestimento é uma das agressões mais violentas que o morador da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) poderia sofrer.

Como tentamos explicar no artigo supracitado, a decisão de “fugir” para alguns dos municípios com melhores índices de desenvolvimento humano no entorno da capital paulista pode, a princípio, parecer uma fantasia pouco usual, mas não passa da reprodução de um comportamento em busca de sobrevivência: o mesmo comportamento que levou ao surgimento de inúmeras periferias a partir de mercados imobiliários informais, que retroalimentaram um ciclo (ainda inacabado) de crimes ambientais e urbanísticos.

A diferença é que nossa discussão não cruzou a linha que separa o mercado imobiliário formal do informal e, justamente por isso, envolveu uma considerável barreira de poder aquisitivo. Esta barreira, no entanto, é muito frágil, já que a CPTM é parte do alicerce. Sem o bom funcionamento da estatal e seus trens, o fato de o valor do m² poder ser substancialmente menor ao longo de suas linhas, traduzindo-se numa espécie de “luxo acessível”, perde o peso de outrora, tendendo à irrelevância.

Legenda: Edifícios na área de influência da Estação Estudantes (a até aproximadamente 2 km), em Mogi das Cruzes. Precificação competitiva do m² em relação à capital e bom tecido de comércio e serviços. Clique para ampliar

A trajetória do COMMU, que completará uma década no segundo semestre de 2024, oferece nitidez à percepção de que, infelizmente, parte da opinião pública ignora que a CPTM, a despeito da superlotação e da baixa visibilidade, é uma espinha dorsal altamente qualificada. A CPTM viabiliza o acesso a oportunidades e equipamentos públicos e privados em 23 municípios — sim, estamos considerando as linhas sequestradas pela ViaMobilidade na conta. Mesmo que a CPTM pouco apareça nos principais veículos da imprensa, suas linhas são cicatrizes de centenas de km de extensão serpenteando uma vasta paisagem metropolitana.

Legenda: Fragmento extraído do quinto volume da série Cadernos Técnicos (p. 80; ANTP/BNDES). Mapa e parágrafo sublinham que a maioria da população da RMSP (85%) vive a uma distância de, no máximo, 5 km de uma estação do Trem Metropolitano, potencializando estratégias de intermodalidade do tipo Trem Metropolitano-bicicleta

É um equívoco associar a CPTM à pobreza e, mais ainda, é um equívoco esboçar qualquer desprezo ou indiferença, julgando que deteriorar o Trem Metropolitano produzirá consequências mínimas, afetando apenas populações de baixa renda, historicamente massacradas e pouco mobilizadas.


Parte 2: o sabor agridoce de uma vida sobre trilhos

Voltemos ao que pode parecer uma excentricidade.

Para não parecer ridícula, a visão admitidamente excêntrica do artigo “Sucateamento da CPTM pode potencializar relações tóxicas com o território” exige manipular uma delicada teia de sentimentos.

A utilização dos trens da CPTM está longe de ser uma panaceia: durante os dias úteis, os horários de pico exigem resistência física e impõem estresse psicológico.

A pressão sobre a pessoa passageira das linhas da CPTM se dá em meio à sensação recorrente de que os trens seguem enchendo, mesmo em horários alternativos; aos finais da semana, os atuais limites da política pública ligada à estatal impõem severas restrições na circulação que dinamitam as noites de sábado e domingos inteiros, com intervalos médios na casa dos 30 minutos durante os vales.

Mas nem tudo envolve a circulação dos trens. Outras questões se amontoam: contraste entre estações e visões conflitantes de diferentes governos (por exemplo, Suzano × Mendes·Vila Natal × São Caetano Sul), baixa solidariedade entre prefeituras, subaproveitamento das imediações de linhas e estações, fadiga imposta pela relação entre as características do salão dos trens e as distâncias percorridas, entre muitas outras.

Legenda: Contraste entre as estações São Caetano do Sul (acima) e Suzano (abaixo). Enquanto Suzano foi reconstruída e parcialmente reinaugurada em 2016, São Caetano do Sul foi modernizada em 2023 como parte de um programa de obras de acessibilidade

Longe de esgotar uma discussão que já se arrasta desde 2014, e, apesar de tudo o que acabamos de dizer, o Trem Metropolitano da CPTM continua sendo um dos sistemas mais peculiares e fascinantes do país.

Para as classes mais baixas, mesmo com as dificuldades associadas ao acesso à terra, o Trem Metropolitano garante a aproximação entre moradia e oportunidades de trabalho, lazer, cultura e educação. Como longos braços, que se estendem em direção aos loteamentos clandestinos e irregulares e suas incontáveis patologias, as linhas da CPTM atenuam a expulsão do mercado imobiliário da capital, oferecendo uma alternativa para além de favelas e ocupações de edifícios ociosos em localizações estratégicas.

Para as classes médias, o Trem Metropolitano é um elemento de coesão que conecta diferentes economias locais e proporciona alguma dose de independência em relação à capital paulista. Sendo, muitas vezes, parte da gênese dos municípios da região metropolitana, o Trem Metropolitano interliga centralidades concretamente dotadas de incentivos políticos e orçamentários para seu desenvolvimento. Em porções com relações mais profundas, os trens são uma ponte veloz entre uma série de microcosmos.

Mesmo que as obras e planos de expansão da malha do METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo) ofereçam matéria-prima com potencial muito maior para atração de cliques, deveria ser muito mais tangível observar as possibilidades oferecidas por uma estatal acostumada a tirar leite de pedra, operar com quadro funcional apertado e ter parte das atividades terceirizadas (como limpeza, vigilância e parte da manutenção). Em outras palavras: quando olhamos para a CPTM, não precisamos esperar por uma década ou mais, sonhando com um punhado de novas estações e quilômetros de trilhos, pois a malha é relativamente extensa e funcional, e poderia entregar muito mais possibilidades caso fosse modernizada com afinco.

Até os dias atuais, a CPTM continua sendo uma das conexões mais rápidas entre as zonas Leste, Central e Oeste da capital paulista. Em poucos minutos, o Serviço 710 (Rio Grande da Serra-Francisco Morato-Jundiaí) conecta a Mooca à Barra Funda (trajeto com extensão de 7,9 km), com lotação consideravelmente menor do que a Linha 3-Vermelha (Palmeiras·Barra Funda-Corinthians·Itaquera).

Encarar as ruas paulistanas durante uma greve da Companhia do Metropolitano (normalmente, grafada como Metrô) e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), para muitas pessoas, não temos dúvidas, é sinônimo de incerteza e aborrecimento. Ontem, 24 de março, diante da intransigência dos dirigentes do Metrô e do governador recém-eleito, Tarcísio de Freitas (Republicanos), São Paulo amanheceu sem a operação das linhas 1-Azul (Jabaquara-Tucuruvi), 2-Verde (Vila Prudente-Vila Madalena), 3-Vermelha (Corinthians·Itaquera-Palmeiras·Barra Funda) e 15-Prata (Vila Prudente-Jardim Colonial).

A Linha 11-Coral (Luz-Estudantes) também oferece uma viagem com poucas paradas entre Itaquera, Tatuapé e a Estação Luz, proporcionando uma série de conexões no sentido norte-sul, oeste e noroeste. Também em poucos minutos, é possível driblar a superlotação da Linha 3-Vermelha na Estação Tatuapé, desembarcar na Estação Luz (trajeto com extensão de 6,5 km de distância) e seguir para a Lapa ou Pinheiros.

De fato, a mesma Linha 11 está situada entre a polarização exercida por dois núcleos que combinam compras, escritórios, gastronomia e boemia: Tatuapé e Mogi das Cruzes. Em cerca de 1 hora de percurso, é possível viajar entre eles, vencendo uma distância de aproximadamente 43 km.

Antes da esculhambação proporcionada pelo Grupo CCR, a Linha 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) oferecia viagens parciais que facilitavam o acesso aos municípios de Osasco e Barueri. Em cerca de 30 minutos, era possível sair da Estação Palmeiras·Barra Funda e embarcar em uma das várias linhas de ônibus em direção ao núcleo caminhável e dinâmico da porção barueriense do bairro Alphaville.

Legenda: Terminal Metropolitano Km 21 em agosto de 2017, com diagrama de atendimento (à esquerda) e ônibus da Linha 450TRO (à direita). A Linha 450 é uma das diferentes ligações troncais intermunicipais entre estações da CPTM e a Alameda Rio Negro, uma das principais vias do bairro Alphaville

Similarmente, em dias de calor extremo, a Linha 9-Esmeralda (Osasco-Mendes·Vila Natal) oferecia um acesso rápido e conveniente a uma série de centros comerciais, com destaque para o trio Eldorado, Market Place e MorumbiShopping. O vai e vem dos trens em meio ao rio Pinheiros mesclavam o conforto do ar-condicionado, a prática do ciclismo e a paisagem de um dos principais conjuntos de condomínios de escritórios da América Latina.

Finalmente, o Grande ABC reserva boas surpresas, graças aos municípios de São Caetano do Sul, Santo André e Ribeirão Pires. Os dois primeiros oferecem, além do tecido de comércio e serviços, típico de um centro de cidade, mais opções de gastronomia, boemia e lazer. Graças à recente operação sem cobrança de tarifa, São Caetano do Sul também é capaz de oferecer um nível inédito de integração entre trens e ônibus. Ribeirão Pires, regionalmente famosa pelo Festival do Chocolate, é uma excelente dobradinha em relação à histórica vila de Paranapiacaba, porção do território andreense que, do ponto de vista do transporte público, se comporta como um enclave em Rio Grande da Serra.

Introdução Em 27/09/2018, a Agência Mural publicou uma reportagem a respeito da busca por recursos adicionais, oriundos do título de MIP (Município de Interesse Turístico). Os municípios dotados do título recebem, a cada ano, R$ 550 mil do Governo do Estado de São Paulo para que invistam no setor turístico. O tema é interessantíssimo, pois a RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) abriga cerca de 20 milhões de habitantes e, considerando o uso do transporte coletivo, há um grande potencial turístico.


Conclusão

A malha da CPTM está longe de ser um passeio no parque, mas negá-la não alterará a materialidade do território atendido. Com mais de 260 km de extensão, seus trilhos merecem respeito e maior atenção. É na CPTM que centenas de milhares de habitantes, ainda que submetidos a diferentes tipos de humilhação, conseguem viabilizar a própria existência numa região irracionalmente espraiada e profundamente desigual. Às classes médias, que esboçam preocupantes desejos de autossegregação em redes sociais, a CPTM é a única alternativa que media diferentes espaços de consumo e mercados imobiliários com preços competitivos, viabilizando uma vida pouco ou nada motorizada em grande escala.




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