Lote Nova Raposo motiva busca por metrô milagroso

Por Caio César | 05/07/2024 | 9 min.

Legenda: Trecho da rodovia compreendido entre o Rodoanel Mário Covas e o complexo de três loteamentos comercializado como Terra Nova Granja Vianna
A Linha 22-Marrom é só mais um projeto entre tantos outros, agravado pelo péssimo uso e ocupação do solo de seus potenciais atendimentos. Por que moradores de bairros horizontais, incluindo as aberrações urbanísticas da Granja Viana, deveriam furar a fila das periferias densas que ajudaram a criar? Metrô não combina com autossegregação e baixa densidade

Recentemente, o governo estadual anunciou a continuidade do Lote Nova Raposo, um dos vários pacotes do programa de desestatização de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Este desdobramento do Executivo paulista não necessariamente suscita uma derrota para o movimento Nova Raposo Não, que envolve diferentes organizações, algumas delas problematicamente reacionárias, como o Movimento Defenda São Paulo, e já angariou mais de 19 mil assinaturas contra o Lote.

Na verdade, a ideia deste artigo é, mais uma vez, retomar a problematização em torno da reivindicação por transporte sobre trilhos, reiterada em reportagem recente do jornal SP2 da TV Globo.

Salientamos que a ideia não é se colocar como uma oposição ao Nova Raposo Não, muito menos defender o governo, mas sim reforçar nossa postura de não alinhamento, já que associações sectárias de bairros nobres paulistanos estão envolvidas. Ao mesmo tempo, este artigo tenta qualificar uma discussão que, a despeito de contar com o apoio de, pelo menos, 100 entidades, não se mostra devidamente qualificada.

O primeiro aspecto a ser problematizado é a demanda por transporte sobre trilhos. Nas redes, há quem estime o custo do km de metrô pesado subterrâneo em cerca de R$ 200 milhões, quando, na verdade, deveria ser de aproximadamente R$ 1 bilhão, ou seja, cinco vezes maior.

Legenda: Em publicação do Nova Raposo Não no Instagram, apoiadora subestima consideravelmente os custos para construção de uma linha de metrô

Há ainda uma intrigante insistência em não questionar a articulação entre metropolitano e entorno, principalmente quando o traçado disponível no GeoSampa, serviço da capital paulista que permite a consulta de informações geográficas, parece ser uma diretriz pouco rigorosa. Na verdade, faz todo sentido que assim seja, afinal, uma empresa está incumbida da tarefa de ajudar a desenhar uma linha viável.

No passado, a ideia de um atendimento por monotrilho foi rechaçada pela população (ou, talvez seria melhor dizer, pelo Movimento Defenda São Paulo). A proposta condicionava a construção da linha a uma dupla privatização, provavelmente mirando num modelo de concessão de longo prazo (30 anos, pelo menos). O grupo CCR, o mesmo que está envolvido nas linhas 4-Amarela (Luz-Vila Sônia), 5-Lilás (Capão Redondo-Chácara Klabin), 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno), 9-Esmeralda (Osasco-Mendes·Vila Natal) e 17-Ouro (Morumbi-Washington Luís/Aeroporto de Congonhas), construiria a linha, mas ficaria responsável por operar a rodovia, alargá-la e obter receita com a cobrança de pedágio.

O subsídio ao carrismo venceu pela manutenção do status quo, e o trecho da rodovia voltado à articulação metropolitana na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) continuou sem pedágio, ao passo que o acesso ao interior seguiu o modelo tradicional, com uma tarifa substancial, que desestimula viagens na escala da Macrometrópole, notadamente entre São Paulo e Sorocaba.

Com a proposta rejeitada, a Linha 22-Marrom seguiu nas pranchetas do METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo), sendo o desdobramento mais concreto a contratação do Consórcio Systra Prime. Em outras palavras, a população do vetor de crescimento formado ao longo da rodovia Raposo Tavares está na fila. E, por fila, estamos dizendo que a Linha 22-Marrom é só mais um projeto entre tantos outros, com alguns agravantes ligados ao uso e ocupação do solo, que abordaremos a seguir.

Ao contrário das expansões das linhas 4-Amarela e 5-Lilás em direção a Taboão da Serra e Capão Redondo, respectivamente, parte substancial do tecido a ser atendido pela Linha 22-Marrom não se parece com uma periferia de classe baixa e classe média baixa, mas um conjunto de bairros de baixa densidade, incluindo agrupamentos de condomínios fechados. Para tornar a implantação ainda mais desafiadora, por leniência do Executivo cotiano, que historicamente aprova condomínios horizontais de alto padrão sem qualquer tipo de preocupação com o fomento a uma cidade compacta, a articulação interna é prejudicada, reforçando o papel da rodovia Raposo Tavares para deslocamentos entre bairros.

A postura permissiva da prefeitura de Cotia, que parece confundir a região metropolitana com algum rincão texano, terceirizou totalmente a produção da cidade e externalizou problemas locais para o governo estadual. Sim, o projeto de alargamento da rodovia é anacrônico, mas é importante salientar que não há alternativa para articulação local sem conflito entre fluxos regionais/macrometropolitanos, metropolitanos e municipais.

Eis o primeiro grande obstáculo: como se já não bastasse a soberba dos defensores dos loteamentos higienistas e questionáveis da Companhia City, uma cópia preguiçosa e precária de seus ideais resultou num tecido ainda mais fragmentado e dependente de automóveis, conhecido como Granja Viana. Ainda que alguns delirem com um “ambientalismo de butique”, nenhum bairro ajardinado ou pseudo-ajardinado afetado pelo Lote Nova Raposo é sinônimo de área verde ou sustentabilidade ambiental. Muito pelo contrário, estamos diante de subúrbios rodoviaristas, que parasitam outras porções da região para terem acesso a bens de consumo e serviços dos mais variados tipos.

Nenhum sistema de metrô será capaz de remediar, sozinho, a Granja Viana, que acreditamos ser um dos principais gargalos da Raposo Tavares. E, antes que alguém tente minimizar o problema, adiantamos que outros bairros populares de Cotia não são necessariamente melhores. O fato de alguns bairros permitirem um mínimo de vida a pé e a utilização de ônibus, infelizmente, não elimina o mesmo problema: a ausência de conectividade sem envolver a rodovia e o desequilíbrio na oferta de comércio e serviços.

Considerando que a construção da Linha 22-Marrom custará dezenas de bilhões de reais e trivialmente exigirá um horizonte de 30 anos, disputando recursos com expansões em tecidos mais racionais, faz-se necessário elevar a dose de pragmatismo.

Uma alternativa ao Lote poderia consistir nas seguintes medidas:

  • Execução de pesquisas do tipo origem-destino com sensibilidade adequada para a escala do problema, ou seja, pelo menos, entre Vargem Grande Paulista e a região das subprefeituras paulistanas de Butantã e Pinheiros;

  • Redesenho de linhas de ônibus municipais e intermunicipais, incluindo premissas relativamente óbvias, como:

    • Presença de pontos junto às portarias dos enclaves murados, assim como já é feito a norte, em Alphaville;
    • Adoção de tipologia do tipo tronco-alimentada, com troncos altamente qualificados sendo alimentados e alimentando ônibus de menor porte, para garantir capilaridade e níveis de serviço substancialmente superiores aos praticados atualmente;
    • Idealmente, toda ligação troncal de transporte coletivo sobre pneus não apresentaria intervalos maiores do que 15 minutos;
    • Priorização de ônibus no viário dos bairros, com faixas exclusivas, pelo menos;
    • Implantação de corredor de ônibus na porção central da rodovia, com terminais de integração e previsão de adensamento em todas as cercanias que não admitam verticalização, com parâmetros que não sejam inferiores aos praticados em cidades norte-americanas que têm adotado práticas de DOTS (Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável), e idealmente com densidade similar a subúrbios europeus dotados de sistemas de transporte com nível de oferta semelhante.
  • Desenvolvimento de projetos de articulação local para mitigação do tráfego de viagens mais curtas, oferecendo uma alternativa à rodovia;

  • Elaboração e implantação de rotas estratégicas de caminhada, com calçada uniformizada de elevado padrão e sistema de informações (wayfinding).

A alternativa acima é mais barata e compatível com o péssimo modelo de urbanização adotado, permitindo sua correção para implantação de metrô no horizonte de um século (idealmente, metade disso). Entre as expansões que consideramos prioritárias em detrimento de uma linha de metrô subterrânea até Cotia, estão:

  • Programa de corredores metropolitanos da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos), que inclui, entre outros corredores, o Itapevi-Cotia, com conexão à Linha 8-Diamante;
  • Expansão da Linha 2-Verde (Vila Prudente-Vila Madalena) até Guarulhos;
  • Construção da Linha 19-Celeste (Anhangabaú-Bosque Maia);
  • Construção da Linha 6-Laranja (São Joaquim-Brasilândia);
  • Expansão da Linha 15-Prata (Vila Prudente-São Mateus) até a Estação Ipiranga da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e a até a Cidade Tiradentes;
  • Expansão da Linha 13-Jade (Engenheiro Goulart-Aeroporto·Guarulhos) até a Estação Chácara Klabin (improvável devido à concessão lesiva em andamento);
  • Expansão da Linha 4-Amarela até Taboão da Serra;
  • Expansão da Linha 5-Lilás até o Jardim Ângela;
  • Construção de metrô leve em “U invertido” para dupla conexão entre a Linha 8-Diamante e logradouros estratégicos do bairro Alphaville, em Barueri (improvável, pois foi engavetada sem explicação e não parece ser interessante para o atual governo);
  • Uma série de obras de modernização e melhoria em linhas da CPTM, nem todas previstas pelo atual governo.

Destacamos ainda que uma melhor articulação da Raposo Tavares, suas cercanias e o transporte coletivo sobre pneus pode permitir uma dupla conexão entre aquele vetor de crescimento e a Linha 8-Diamante, tanto por meio do supracitado corredor da EMTU, quanto por meio de uma ou mais linhas utilizando o Rodoanel Mário Covas, possibilitando acesso à Estação General Miguel Costa, que já conta com um terminal urbano desde 2017.

Como enfatizado anteriormente, a Linha 22-Marrom é só mais um projeto numa extensa fila. Devido às baixas densidades e ao mau uso e ocupação do solo, dentro e fora da capital paulista, não existe nenhum motivo plausível para “furar fila” e passar na frente de localidades mais vulneráveis e densas, ou, no mínimo, com planejamento superior.

É muito menos absurdo gastar relativamente pouco e oferecer uma conexão entre a Linha 8 e Alphaville, do que iludir milhares de signatários a crer que uma linha como a 22 será construída imediatamente, substituindo o Lote Nova Raposo. Similarmente, corrigir vários problemas persistentes na CPTM custa menos e movimenta muito mais pessoas. Um corredor como o Itapevi-Cotia também seria relativamente barato, e o momento é extremamente oportuno para disputá-lo.

Como adiantamos no passado, o uso e ocupação do solo não pode ser negligenciado, pois metrô não é bala de prata. Parte da periferia só existe porque São Paulo preferiu preservar paisagens e modos de vida questionáveis, exportando seu crescimento para as franjas. Além de o crescimento ter ocorrido de forma desordenada em diferentes porções do tecido, persistem grandes desigualdades até os dias atuais, reforçando o caráter estruturalmente racista da cidade construída.

É preciso ter coragem e decidir: ou metrô tem prioridade, ou bairro-jardim deve ser preservado. Metrô não é trem de subúrbio. E trem de subúrbio, neste país, nunca foi muito além de um açougue moedor de gente pobre, gente nordestina, gente que não tem pele branca. Se alguns confundem São Paulo com os subúrbios ricos e racistas de Nova Iorque — leituras recomendadas: “Can New York Fix Its Housing Crisis? It Depends on the Suburbs” e “The Era of Shutting Others Out of New York’s Suburbs Is Ending” —, chegou a hora de despertar para a realidade. E a realidade, infelizmente, não é nada bonita, nem simples.




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