Gringoteca: extraindo referências de youtubers gringos

Por Caio César | 21/07/2024 | 7 min.

Legenda: Logotipo do COMMU
Sim, vamos precisar olhar para conteúdo gringo. Nos últimos meses, o Coletivo discutiu uma série de questões com base em provocações levantadas por pessoas com cidadania do Canadá ou dos Estados Unidos, dois países que estão longe de serem exemplo em matéria de cidades densas e compactas, ou de sistemas ferroviários próximos do atual estado da arte

Enquanto a discussão de cidades e de mobilidade continua amesquinhada no Brasil, mesmo considerando que o principal objeto de discussão do Coletivo seja a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), uma das concentrações populacionais mais complexas do país (e, provavelmente, do continente), o mundo continua a girar, e o acesso à Internet em alta velocidade segue proporcionando conexões que, há cerca de duas décadas, exigiriam capacidade para costurar presencialmente relações com pessoas e lugares, a um custo elevadíssimo, tanto de tempo, quanto de dinheiro.

Canais no YouTube como CityNerd, Oh The Urbanity, City Beautiful, Not Just Bikes, RMTransit, Type Ashton e, possivelmente, mais alguns outros, oferecem matéria-prima para reforçar que há algo extremamente errado por aqui. O time é reforçado por organizações como Parking Reform Network, Strong Towns, Streetsblog e NACTO.

Deixando a aridez acadêmica de lado, a necessária discussão que entrelaça cidades, mobilidade e mais uma série de outros temas de difícil separação, transitando pelos corredores da Geografia, da Economia, da Arquitetura e de tantas outras ciências, é, de tão minúscula, praticamente inexistente. É verdade que nomes como Alex Sartori, Caos Planejado e São Paulo nas Alturas fazem um trabalho interessante, mas exceto pelo último, tudo ainda muito aquém do que tem saído na “gringolândia”.

Você pode estar se perguntando: “como assim, o caos das cidades não estampa diariamente nossos jornais?”. Bem, sim, mas também não. A imprensa, independente de sua origem, tem contribuído com alguma dose de jornalismo declaratório, reprodução de boletins governamentais, reportagens com prazo de validade curtíssimo (ou seja, contribui para noticiar, não para investigar aquilo que dialoga com a notícia) e algum material documental (geralmente, pouco crítico).

A cobertura regional da imprensa também está ligada à capacidade de acúmulo de capital. Cidades maiores e mais ricas possuem maior abundância de veículos de comunicação, enquanto cidades menores e menos ricas podem ser “desertos de notícias”. O caso exemplar de Pirapora do Bom Jesus, no oeste metropolitano, entrou na mira da Agência Mural pela ausência de jornalismo local.

Feita a introdução, considerando as conversas que tenho fomentado internamente, urge a necessidade de buscar referências sem arriscar um oportunismo vazio, que viaja a Paris para reforçar o necessário coro contra veículos utilitários esportivos (SUVs, na sigla em inglês), mas sofre de amnésia ao aterrizar em Cumbica: eis a Gringoteca, nossa mais nova publicação, que se soma às tradicionais Trens Metropolitanos e Metropolização em Debate.

Há alguns dias, voltei a me deslocar diariamente para São Bernardo do Campo[1] e, ao longo de uma semana, suspeito que já acumulei material suficiente para fomentar discussões por meses, escrevendo artigos, publicando no Instagram, dialogando internamente com outros membros no Telegram, etc. E é sobre isso que eu gostaria de falar, sobretudo, para alfinetar o que parece um curioso “processo de filtragem”, deliberado ou não, que reproduz ou escancara profundas contradições de classe.

O referido oportunismo vazio seria, talvez, sintoma de um vira-latismo silencioso, do tipo que celebra o urbanismo progressista na Europa, mas permanece com cacoetes típicos da engenharia de tráfego estadunidense na Vila Prudente?

Sobre um dos problemas que mais aflige os paulistanos atualmente, a verticalização desenfreada, o deputado foi categórico: “o prefeito vendeu São Paulo para as grandes construtoras”. “Isso não está acontecendo somente aqui na região da Vila Prudente e da Mooca, acontece no Centro Expandido inteiro e em boa parte da cidade”, acusa. “O Fernando Haddad (PT), durante sua gestão na Prefeitura, aprovou um Plano Diretor para estimular a construção de prédios nas regiões de metrô e dos grandes corredores viários, com redução de vagas de garagem, justamente para estimular o transporte público e reduzir os congestionamentos. Mas, na recente revisão do Plano Diretor, a Prefeitura piorou a proposta, liberando mais vagas de garagem e aumentando o perímetro para construções de prédios, na maioria de alto padrão”, explica. “Ninguém é contra a construção civil, mas precisa ter planejamento. No terreno onde estavam quatro casas, com oito carros em média, estão erguendo torres de 20 andares, que vão somar mais de 80 veículos. Mas, a rua continua a mesma”, conclui. “Isso é insano. Eu tenho duas filhas e não é essa cidade que eu quero para elas”.

Fonte: Guilherme Boulos (PSOL), em entrevista à Folha de Vila Prudente (10/11/2023)

Francamente, entrar no mérito da estupidez presente em passagens como “verticalização desenfreada”, “aumentando o perímetro para construções de prédios, na maioria de alto padrão” e, principalmente, “a rua continua a mesma”, não faz o menor sentido, por dois motivos: (i) já discutimos exaustivamente sobre a postura errática da esquerda paulistana, bastante guiada pela agenda segregacionista dos chamados bairros nobres; e (ii) por reforçar que o debate carece de referências acessíveis, visuais e recorrentes.

“Todo mundo quer poder morar numa casa, ou num bairro que tenha uma verticalização não tão grande”, assim começa a fala de Paula Santoro, uma das representantes da intelectualidade da Universidade de São Paulo (USP). A construção de prédios em vez de casas vai desconfigurar bairros, destruir quadras e, por consequência, modos de vida. O alerta é da coordenadora do LabCidade, @paulafsantoro. Em entrevista na @CBNoficial , Paula detalhou os efeitos nefastos do PL da revisão do Plano Diretor.

Como desistir não é uma opção, e ninguém aqui nasceu com o patrimônio de um sultão, a escolha é óbvia: faz mais sentido aproveitar o que está sendo feito por outras pessoas, ainda que o conteúdo não seja ideal, não esteja em português, nem reflita perfeitamente os desafios da vida na RMSP, do que não fazer nada.

Aliás, sejamos francos: já fizemos algo parecido no passado, quando discutimos o enterramento das linhas da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) no eixo Lapa-Brás, em 2018, ou criticamos a proposta de trem intercidades para conexão entre São Paulo e Campinas, em 2021.

O conteúdo dos canais citados no início deste texto contribuiu para reforçar uma série de impressões positivas, como, por exemplo:

  • Cidades texanas como Houston e Dallas, estigmatizadas pelas altas temperaturas e pelo perfil do eleitorado, conseguiram desenvolver sistemas baseados em veículos leves sobre trilhos (VLTs), enquanto o Brasil possui apenas um sistema relevante, mas muito pequeno, numa iniciativa do município do Rio de Janeiro, sem participação do governo fluminense;
  • Num movimento surpreendente, a francófona Montreal se tornou parte de um ambicioso projeto, que consistiu na conversão de trens confortáveis e infrequentes para trens não tão confortáveis, mas muito mais leves e frequentes, criando um novo sistema de metrô regional que, de tão barato que ficou, pôde ser financiado por um fundo de pensão;
  • Uma série de cidades estadunidenses, mesmo com uma cultura automobilística difícil de combater, foram capazes de remover a obrigatoriedade para estacionamentos e permitir densidade de 4, 8 ou, pasme, muito mais pavimentos, sem qualquer transporte de massa comparável ao que existente em São Paulo (Charlotte, na Carolina do Norte, é um exemplo);
  • Enquanto Mogi das Cruzes, Santo André, São Bernardo do Campo, e vários outros municípios, exigem estacionamentos mesmo para quitinetes, um movimento contrário tem ocorrido nas mais diversas cidades, como mostra o Parking Mandates Map;
  • E muitas, muitas outras impressões positivas, como a potencialização de sistemas de ônibus por meio de rodovias em Seattle, a importância de uma nova linha ferroviária perimetral região metropolitana parisiense, as estratégias para ruas locais vibrantes no Japão, e por aí vai.

De alguma maneira, precisamos romper tanto com o oportunismo de curtíssima duração, quanto com o deserto urbanístico, incorporando boas práticas nas ainda tímidas discussões e lutas em torno das cidades da RMSP.

Ao longo dos últimos meses, acumulamos muitas referências e discussões. Pouco a pouco, resgataremos, pelo menos, parte delas. Há muito trabalho a ser feito!




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