Por Caio César | 23/07/2024 | 8 min.
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Contextualização
Este artigo tece comentários a respeito do vídeo “Propostas para o Transporte Público | Pra Cuidar de São Paulo”, ligado à candidatura da chapa oficializada por Guilherme Boulos (PSOL) e Marta Suplicy (PT) em 20 de julho. O vídeo foi carregado no canal de Guilherme Boulos no YouTube há cerca de duas semanas, em 11 de julho de 2024.
Até começar a discussão da Estrada M’boi Mirim (via localizada no extremo sudoeste do município), a conversa pareceu acertada. É claro que há simplificações aqui e ali, mas isso não é um problema. Considerando a proposta do material, que compacta uma discussão propositiva antes do clima eleitoral esquentar, o importante, na verdade, é apresentar a postura correta ao assumir, caso se vença.
Corredores de ônibus e baixas velocidades
A Ana Odila mandou muito bem, citando vários corredores perimetrais (ainda que talvez tenha fugindo da pergunta). Estes não existem e não passaram por etapas de elaboração de projetos para serem feitos com celeridade, ou seja, é um desafio, principalmente porque a capital entrega infra de baixo nível por padrão, sendo que todo corredor deveria ser BRT (Bus Rapid Transit, ou transporte de massa por ônibus, numa tradução razoável) em termos de arquitetura.
Não é admissível uma parada numa grande avenida com o mesmo ponto que se usa num bairro dormitório qualquer da Zona Leste: ponto de ônibus pensado para bairro não funciona bem em casos assim, é uma economia questionável e puro desleixo.
Já sobre a discussão da velocidade dos ônibus ser baixa, Boulos erra um pouco. Pelo Olho Vivo, sabemos que ela é baixa mesmo nos melhores corredores. Por que é baixa? Excesso de ônibus!
Tem linha demais, sobreposição demais. Não se corta linha, não se faz terminal, se sacrifica capacidade de frota para agradar fabricantes.
Sérgio Avelleda, que já passou pela Companhia do Metropolitano de São Paulo (METRÔ) e foi secretário municipal de Mobilidade e Transportes, sempre apontava em conversas informais com ativistas e entusiastas sobre o contraste entre São Paulo e Curitiba. Considerando a experiência de Curitiba, e linhas como a 203 (Santa Cândida-Capão Raso), o ideal seria ter 1 (uma) linha por corredor.
A 203 é uma linha com biarticulados de alto giro que atende estações fechadas e confortáveis. Incorporando as premissas curitibanas, aquilo que não se encaixasse demandaria ajuste de malha e infraestrutura (justamente o que São Paulo não tem feito em ritmo aceitável).
Ainda sobre o assunto, vale lembrar que ainda que existe um desafio pela ausência de conexões expressas, já que o arranjo do tecido da própria cidade cria esse problema, com desequilíbrio nas densidades populacionais (periferias mais densas do que centralidades) e distâncias (periferias extensas e distantes demais das centralidades).
Como São Paulo está repleta de periferias ruins, a lógica da pessoa passageira é entrar no sistema de transporte e só desembarcar depois que o m² dos imóveis ficou pornográfico. É ruim demais, e, como resultado, o ônibus se transforma num “pingador” que satura porque entope ainda na quebrada.
Bondes sobre pneus
Próximo assunto a ser comentado: DRT (Digital-rail Rapid Transit, algo como transporte de massa sobre trilhos digitais). Para contexto, o principal sistema baseado na tecnologia DRT é chinês e opera num subúrbio pensado para funcionar como cidade de contorno, localizado a 60 km da área central de Xangai.
O Coletivo discutiu internamente sobre isso dias antes do vídeo supracitado. A discussão foi baseada numa digressão resumível em dois pontos:
- VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) é a tecnologia madura ideal, entretanto, que não podemos subestimar, pois é uma obra de metrô de superfície (é preciso “rasgar” a cidade para implantar os leitos e subleitos, normalmente, aproveitando avenidas pré-existentes); e
- Qualificar e ampliar o atendimento de média capacidade com ônibus, mesmo sendo muito aquém do ideal, já seria incrível, pois São Paulo apresenta um deficit imenso de corredores, sendo a situação muito crítica para ligações perimetrais (ou seja, aquelas que fogem do padrão radial periferia-centro, predominante).
O DRT enseja preocupações com fatores como maturidade, custo × benefício, entre outros. Considerando os traumas com os monotrilhos, seria preferível que se falasse em VLT, principalmente um sistema do tipo light rail (metrô leve), cujos bondes teriam a maior quantidade de módulos possível. Nos corredores das imensas vias expressas que poluem São Paulo, seriam bondes bem grandes, com capacidade para 800 pessoas.
Utópico? Talvez, mas também básico no universo paralelo “Brasil com vergonha na cara”. Se ninguém sonha e ninguém discute, mistificando tecnologias maduras e consagradas em diferentes pontos do planeta, fica difícil avançar com a impressão inicial de que se trata de um devaneio utópico.
Um sistema como o DRT, por coerência com a esbórnia oportunista em torno da Linha 15-Prata (Vila Prudente-Jardim Colonial), só deveria ser rotulado como “metrô de superfície” se oferecer uma capacidade formidável: não se pode atacar a Linha 15 num dia, e chegar depois com um ônibus de guiagem pouco invasiva para carregar bem menos gente, chamando o primeiro de fiasco e o segundo de metrô.
Um trem da Linha 15 carrega mil pessoas (assumindo lotação, 6 pessoas por m²), e o fabricante (originalmente, Bombardier, atualmente, Alstom) oferecia um modelo maior, se fosse necessário. A Companhia deve ter optado por aquele para equilibrar custos, desafios, etc. das estações. Para se ter uma ideia, outro sistema chinês sobre pneus teria capacidade para 500 pessoas. Semelhante ao DRT na periferia de Xangai e melhor do que ônibus, mas em quais condições, não sabemos, até porque, muitas das informações estão em chinês.
Em suma, a premissa levantada pela Ana Odila faz mesmo mais sentido para as ligações perimetrais. Seria uma vitória estudar nos eixos que ela enxerga como saturados de carros, pouco qualificados e sem exercer o papel de permitir mais oportunidades de viagens.
Finalmente, sobre o assunto do DRT e dos corredores, para grandes ligações radiais, um VLT seria preferível, de preferência, em mão inglesa e sem pavimentação asfáltica, para reduzir a chance de interferência e populismo envolvendo táxis, peruas escolares e outros veículos de baixa capacidade.
Ônibus elétricos e tarifa zero
Passando para a questão dos elétricos, um aspecto que vale ser pontuado é aquele sobre a necessidade de fomento e diluição do custo de propriedade ao longo do tempo, que apareceu no bojo da participação do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) como fomentador.
O primeiro ponto (negativo) é que, dependendo de como for modelado, a eletrificação pode forçar um contrato longo de concessão; o segundo ponto (positivo) é que também dificulta politicagem com renovação de frota, afinal, um “trator de motor dianteiro e piso alto” tem fácil revenda, já um elétrico super pesado, não; o terceiro ponto, que eu já adianto que não entrou na discussão: é que precisamos considerar trólebus também, pois não faz sentido falar até em tecnologia chinesa de baixa adoção, mas ignorar trólebus e variações.
Já sobre a premissa do ônibus elétrico como viabilizador de tarifa zero integral: considerando discussões passadas, cabe insistir que a capital não é São Caetano do Sul! Implantar uma medida dessas na escala do território paulistano vai impactar outros municípios e sistemas, sem que tenhamos arcabouços para lidar com isso. Felizmente, os pés parecem estar no chão:
- Boulos reforça que a tarifa zero não pode degradar qualidade. Pelas discussões que já acompanhamos, a dimensão da qualidade aparece muito pouco, suscitando várias discussões internas sobre quão revoltante é ser ignorado como pessoa usuária, simplesmente porque o sistema não apresenta cobrança de tarifa;
- Além disso, a resposta da Ana Odila para o desafio da tarifa zero é implantá-la no subsistema local, o que soa muito mais razoável, ainda que o desafio da escala não deveria ser subestimado (por exemplo, seria de bom-tom compreender como esse subsistema está criando bacias de atendimento que extrapolam os limites da capital).
Cabe aqui uma breve discussão a respeito dos ônibus do subsistema local, operado pelas ex-cooperativas. De imediato, parece fácil concordar que o subsistema supracitado tem potencial para contribuir com o desenvolvimento socioeconômico das centralidades localizadas fora do Centro Expandido, incluindo os chamados centros de bairro, por outro lado, não fica claro se, de fato, chegaríamos no ideal da “cidade de 15 minutos”.
Mesmo tomando como exemplo a Linha 3763-10 (Terminal Vila Carrão-Metrô Tatuapé), uma das melhores e mais movimentadas alimentadoras da cidade, é difícil estabelecer um circuito tão breve. A saída do fundo de vale da Vila Formosa, nas proximidades da Avenida Vereador Abel Ferreira, visando consumir no centro de bairro pode, facilmente, girar em torno de 1 hora, num cenário com apenas 3 ou 4 estabelecimentos com consumo recorrente semanal.
Se a ideia da “cidade de 15 minutos” estiver limitada ao circuito casa-embarque-desembarque, pode ser factível, mas se estiver ampliada ao circuito casa-embarque-desembarque-pontos de interesse, o desafio passa a ser maior. Basta pensar em caminhada, espera, embarque, desembarque e caminhada, e os tais 15 minutos passam num piscar de olhos, sem que nada seja efetivamente feito.
Encerramento
No geral, a primeira impressão envolvendo uma discussão organizada com foco em transporte público foi boa. O Coletivo convida toda a população para se envolver nas discussões e exercer pressão constante em torno das candidaturas. São Paulo não pode tolerar mais retrocessos e precisa produzir avanços significativos em todas as infraestruturas de mobilidade sob responsabilidade da prefeitura.
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