Eleições 2024: Guilherme Boulos e propostas para o Centro

Por Caio César | 11/08/2024 | 20 min.

Legenda: Acompanhamento de eleições do COMMU: prefeitura de São Paulo 2024
Em 18 de julho de 2024, Guilherme Boulos e dois nomes de seu futuro gabinete, Raquel Rolnik e Alê Youssef, discutiram propostas para a Zona Central. O COMMU (Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana) discutiu o material internamente e torna públicas suas considerações a respeito

Índice


Contextualização

Este artigo tece comentários a respeito do vídeo “PROPOSTAS PARA O CENTRO DE SP | Pra Cuidar de São Paulo”, ligado à candidatura da chapa oficializada por Guilherme Boulos (PSOL) e Marta Suplicy (PT) em 20 de julho. O vídeo foi carregado no canal de Guilherme Boulos no YouTube na segunda metade de julho, em 18 de julho de 2024.

Legenda: Vídeo “PROPOSTAS PARA O CENTRO DE SP | Pra Cuidar de São Paulo”, publicado no canal de Guilherme Boulos no YouTube

Nossas primeiras reações podem ser extraídas a partir das falas de Lucian De Paula e Caio César, os dois primeiros membros do Coletivo que assistiam o material.

Para Lucian, o teor é “fraquinho”. Em tom de desabafo, para De Paula “ainda bem que a mobilidade urbana tem propostas reais para tocar, porque para o Centro não tem muita sustância, não”. Já Caio César, argumenta que o diagnóstico inicial da Zona Central, oferecido ainda nos primeiros minutos do vídeo, pode ser resumido em “a região, outrora locus da acumulação de capital, cristalizando a riqueza dos negócios da burguesia, se descapitalizou e perdeu protagonismo no PIB (Produto Interno Bruto) e nas dinâmicas da cidade”.

Nas seções seguintes, outros comentários e percepções são apresentados. Esperamos que estes contribuam para esclarecer as impressões iniciais.


Geograficamente central, economicamente periférico

César questiona a que um partido denominado “Socialismo e Liberdade” é chamado em momentos como o atravessado pela cidade. Para o estudante do Bacharelado em Planejamento Territorial, Guilherme Boulos, mesmo sob um prisma modernista e moderado, poderia ter adotado um tom mais crítico: “ele fala de uma forma que nem parece que aquilo ali cristalizou, por exemplo, a riqueza do café”, pontua.

“E eu não sou obrigado a ser solidário com esses latifundiários, nem com indústrias que faliram”, argumenta. “O que eu volto a perguntar é: vamos, de novo, transferir os problemas da burguesia para o Estado? É a isso que chamamos um partido com o nome de Socialismo e Liberdade?”, protesta.

A discussão interna do Coletivo sugere que o retrato atual é produto de uma dinâmica complexa e muito bem conhecida: “incomoda esse papo, sabe? Esse fluxo migratório tem nome e sobrenome, de pessoas e de empresas”, sublinha Caio, que também aponta que nem todos os artífices do esvaziamento se encontram inimputáveis, como se tivessem falecido: “uma parte disso pode ter virado pó, mas nem tudo virou”, crê.

Legenda: Edifícios na Praça da República, em fevereiro de 2019

A questão do esvaziamento econômico, ao se arrastar dentro do século XXI, passa também a se entrelaçar com o desenvolvimento tecnológico, uma vez que o trabalho remoto passou a ser uma realidade muito mais tangível do que era nas décadas de 1970 e 1980, quando o Brasil atravessava um período de informatização mais tímida e sujeito a práticas de reserva de mercado. “Para piorar, entra a questão das telecomunicações. Devolver o dinamismo representaria quais tipos de acúmulo de capital e relações de exploração? Um exército que trabalharia presencialmente? Se sim, no quê?”, indaga Caio, que já protagonizou discussões desagradáveis com o responsável pelo Instituto São Paulo Antiga, se recusando a normalizar os fluxos pendulares que superlotam trens com trabalhadores de baixa remuneração, que sustentam cafés, restaurantes e outros serviços para classes médias e altas.

Para além dos embates com pautas que nitidamente colocam a estética e tratam as periferias como uma fonte inesgotável de serviçais escravizados por baixos salários e perspectivas limitadas de futuro, Caio César apresenta ainda outros questionamentos, que reforçam as críticas deste Coletivo à banalização da ideia de descentralização, que tem aparecido no debate público a reboque de uma narrativa que tenta proteger a paisagem de bairros do Centro Expandido, limitando artificialmente sua população e estimulando o crescimento horizontal, tanto formal, quanto informal, com drásticos efeitos para o meio-ambiente e as infraestruturas que operam numa lógica radial, centro-periferia.

Cerca de metade da população da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) reside nos 38 municípios que orbitam ao redor da capital e, mesmo dentro da capital, parcelas significativas residem a uma distância considerável (a 20, 30 ou mais km de distância) das novas centralidades constituídas ao longo do rio Pinheiros, como Vila Olímpia, Itaim Bibi, Berrini e Faria Lima. Por que um morador da Zona Leste deveria tratar o parque Ibirapuera como principal parque do município, quando reside a uma distância mais curta dos parques do Carmo, do Piqueri ou do Ceret?

“Se não, reforçaríamos os longos deslocamentos em direção ao Centro, no máximo, encurtando algumas viagens? E, se reforçarmos deslocamentos, prejudicamos a descentralização em pontos como o Tatuapé?”, questiona, enquanto também aponta que a descentralização também envolve OUCs (Operações Urbanas Consorciadas), que comercializam potencial construtivo, apresentando potencial para criação de um caixa próprio, capaz de financiar grandes intervenções localizadas: “sabendo da alternativa das OUCs para financiamento de infraestruturas, como o enterramento do eixo Lapa-Brás da CPTM, como garantir uma competição saudável? A cidade comporta tantas centralidades assim?”.

Estas e muitas outras questões, infelizmente, não são respondidas pelo vídeo. A discussão do eixo Lapa-Brás da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos é especialmente cara para nós do COMMU (Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana), por uma série de fatores, a saber;

  • Intimidade com determinadas lógicas de trabalho e deslocamento, devido ao pertencimento histórico ao tecido de base da classe trabalhadora;
  • Avaliação dos gargalos presentes nas linhas 11-Coral (Luz-Estudantes), 7-Rubi (Palmeiras·Barra Funda-Francisco Morato-Jundiaí, hoje parte do Serviço 710 e 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno), tanto pela bagagem técnica, quanto pela condição de pessoa usuária;
  • Interpretação da ferrovia como uma barreira substancial, com efeitos prejudiciais à urbanidade das cercanias em áreas centrais estratégicas, capazes de absorver milhares de habitantes de fora do Centro Expandido, incluindo moradores expulsos para os mercados habitacionais dos municípios vizinhos.

Finalmente, Lucian De Paula aponta que a equipe da candidatura fez um diagnóstico de população flutuante e da população em situação de rua, o que é digno de ser notado, fazendo apenas uma ressalva de que, para além da população flutuante, “ainda tem uma cacetada de gente já morando [no Centro de São Paulo]”.


Fechamento do Café Girondino

Outra coisa interessante entre as falas sobre a situação da economia do Centro: quando Boulos cita que o Café Girondino estava no largo desde 1875, Caio César lembra que a Lei Áurea é de 1888, e Eduardo Ganança, arquitetura e urbanista pela Universidade de São Paulo, explica que o candidato deve ter se equivocado: “o Girondino de 1875 fechou em 1920 e ficava na Praça da Sé, o que fechou [recentemente] era de 1998”.

Para César, “do jeito que ele [Boulos] emenda [as falas], ficou parecendo que [o Girondino] sempre esteve ali [na Rua São Bento]”. Para Ganança, a situação não é nova: “que nem o Paribar, que fechou em 2022, era de 2010, mas pelo menos ficava no mesmo lugar que o da década de 50, que fechou na década de 80”.

Ganança lembra ainda que, no caso do Paribar, “o dono ‘chorou horrores’ quando fechou, culpando a ‘decadência do centro e insegurança’”, entretanto, outro estabelecimento já abriu no lugar e “parece muito bem”.

Em suma, o fechamento do Girondino de 1998 pode até ser triste e, sem dúvidas, resultou em demissões, mas não necessariamente é representativo e capaz de retratar a condição de toda a Zona Central, nem pode ser confundido com seu ancestral de 1875.


Estímulos e vocações

Para Caio César, quando as vocações são destacadas, parece existir uma generalização rasa: “pode ser tudo aquilo que ele destacou, mas nunca só aquilo”, adverte. Lucian identifica que as tais “vocações econômicas” seriam potencializadas com apoio do governo municipal, criticando a fala final de Alê Youssef sobre o assunto: “termina falando merda de que tem que dar ‘match’ das políticas, e que o empreendedorismo é lindo, que é uma coisa das pessoas, que hoje 98% dos empreendedores são de microempresas”, considerando que o número pode ter relação com precarização, ao que a preocupação é acompanhada por Caio, que complementa: “concordo com o Lucian sobre a questão da precariedade nas entrelinhas das falas do Alê a respeito das PMEs (pequenas e médias empresas) e startups”.

Para César, a questão das vocações reforça, mais uma vez, como o Centro adquiriu uma posição economicamente periférica: “no caso de São Paulo, minha percepção é de um Centro que se descapitalizou e substituiu parte da população por uma mais pobre, perdendo também população. No Rio de Janeiro, eu senti um Centro menos descapitalizado, mas menos misto também, sem tantos moradores”.

Legenda: Fachada ativa e comércio predominantemente popular na fachada do Conjunto Duque de Caxias voltada à Avenida Duque de Caxias, em março de 2024. Clique para ampliar

César também explica que o tecido comercial atua como um termômetro: “essa descapitalização é sentida no tecido comercial. O comércio costuma ser dicotômico em São Paulo. O comércio mais popular não se mescla tanto com o que mira nas classes médias mais altas e na classe alta, que eu chamo de comércio de shopping, embora não precise remeter à imagem das franquias plásticas num simulacro” e sentencia: “tudo isso para dizer: no Centro do Rio, eu senti negócios ‘padrão Faria Lima’, o mesmo não posso dizer do Centro de São Paulo”.

A questão das vocações, por exemplo, contrasta com a função de ruas como a Quinze de Novembro: “os grandes bancos ali presentes são cascas vazias”, diz Caio. “O Santander está na JK, na Marginal; o Itaú está em pontos como o entorno da Estação Conceição, a Faria Lima, e até o Tatuapé; o Bradesco está em Osasco e no ‘centro expandido’ [18 do Forte] de Alphaville; o C6 está na Nove de Julho”, elenca.

Legenda: Discussão acerca do elitizado mercado imobiliário de Alphaville, feita pela edição 279 (maio de 2023) da revista Vero, faz sutil provocação sobre o crescimento da região do 18 do Forte, insinuando a consolidação de uma nova centralidade (destaque nosso na página 31). Clique para ampliar

Enquanto De Paula identifica uma estratégia de “ressuscitação” baseada na integração entre programação cultural e investimento permanente, resultando num centro de cidade que oferece com atividades, comércio e outros equipamentos com funcionamento ininterrupto, 24 horas por dia, César pontua que a “potência cultural e criativa” mencionada no vídeo deveria ser um produto endógeno da cidade: “é algo que surge porque outros processos estão ocorrendo”, pondera. De Paula também critica o que parece ser uma estratégia de aluguel permanente, associada à lógica de que prefeitura teria um papel de alugar espaços e sublocar para as atividades que quer estimular: “[Ricardo] Nunes way of life”.

Assim como na discussão sobre descentralização, que ganhou força dentro de pequenos círculos ligados à revisão do Plano Diretor Estratégico e da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (coloquialmente chamada de zoneamento), a discussão sobre economia e população do COMMU busca reduzir subterfúgios. Com base nas falas de membros como Caio César, o ponto levantado pelo Coletivo é bastante direto: se o Centro está carecendo de população (e parte dela precisa poder gastar com supérfluos recorrentemente) e de negócios, é óbvio que a cultura e a criatividade vão ser afetadas.

Para César, há um agravante: “fica nítido que precisa existir um tecido de exploração promotor”, contrastando com o tom adotado no vídeo. “A pergunta que precisa ser feita é: como estimular que capitalistas coloquem dinheiro no Centro? Porque é disso que se trata, quando falamos sem rodeios”, dispara.

Cada vez mais, estou convencido de que o cerne das péssimas discussões urbanísticas está no consumo. Uma parcela do campo progressista parece viver uma síndrome de impostor quando se trata das trocas que realiza em um ou mais mercados. O consumo se entrelaça com uma série de padrões demográficos, dando indícios sobre renda, deslocamentos, nível educacional, entre outros aspectos. É a partir do consumo que sedimentamos nossa relação com a cidade.

Em meio à discussão das falas sobre fomento à cultura e às boas intenções de dinamizar a economia da Zona Central paulistana, De Paula também concordou com a necessidade de propostas mais concretas e, assim como César, não encontrou lastro nas falas finais de Alê Youssuef. “O Alê não está falando nada com nada, ok? Ele já deveria ter pensado [propostas], não jogar na mesa que ’temos que pensar’”, reclama Caio César, que exige: “quero as propostas!”.

Caio parafraseia Youssef, o quadro com experiência acumulada nas gestões municipais de Marta Suplicy e Bruno Covas (PSDB): “o que falta é vontade política e criatividade”, emendando mais uma provocação sem resposta “tá, e as propostas!?”.


Substituição populacional

Na visão de César, “tudo isso que ele [Youssef] está colocando [sobre fomento econômico e cultural] significa fazer exatamente o que o Nova Luz queria fazer”, e alfineta: “e é aí que o capitalismo mostra a face que ninguém gosta de olhar, [aquela que] envolve substituição populacional, envolve alguma dose de transformação da paisagem”.

De Paula lamenta: “pelo menos em outras entrevistas, o Boulos comentava especificamente de experiências que ele viu em Nova Iorque, de pegar um patrimônio ex-industrial de galpões, às vezes, com questão de patrimônio junto, e estimular programas de cultura, treinamento, capacitação e ’empreendedorismo’ principalmente para a população jovem como forma de ocupação”, concluindo que “era uma proposta concreta”.

Lucian também pondera que uma proposta mais próxima da requalificação de galpões talvez fosse “mais pertinente para ‘o outro lado’” da Linha 10-Turquesa (Palmeiras·Barra-Funda-Rio Grande da Serra) da CPTM: “ele pode não ter mencionado por ser fora do tópico de ‘o centro’ a que estão se referindo, o que já daria outra discussão, só esse enquadramento”.

Caio avalia que as porções centrais de Nova Iorque não parecem passar por um processo semelhante ao da Zona Central paulistana: “se pensarmos em Nova Iorque… eu nunca ouvi falar de ‘centro abandonado’, nem quando o metrô ‘dos caras’ era todo rabiscado”.

De Paula também faz uma reflexão sobre a lucidez de Raquel Rolnik em torno do tipo de proposta que “necessariamente pressupõe investimento grande e continuo da prefeitura”: “pelo menos isso a Raquel reconheceu”, pondera.

Para De Paula, que além de arquiteto e urbanista pela Universidade de São Paulo, também é especialista em Economia Urbana e Gestão Pública pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a necessidade de fomento expõe uma lacuna no tecido privado, que não tem se mostrado capaz ou suficientemente interessado para oferecer níveis mais expressivos de prosperidade e atividade econômica na Zona Central: “[a prefeitura] tem que tutelar, não tem essa de plantar a sementinha depois deixar crescer sozinho, não vai acontecer”.

Já Caio César insiste que, com ou sem fomento, o cerne da discussão continua girando em torno da exploração desejada: “a prefeitura pode fazer muita coisa, mas no final do dia, tudo o que ela fizer gira em torno de atração de capital e transformação do perfil do morador, o que significa também transformação da paisagem”, explicando que “isso é o que vulgarmente pode ser classificado em parte como gentrificação”.

Legenda: Apresentação sobre o Nova Luz de novembro de 2010, parte dos arquivos do Conselho Municipal de Política Urbana. Os slides 7 e 8, extraídos do arquivo PDF original e adaptados pelo COMMU, explicitam o desejo de transformação do perfil do morador que existia durante a gestão Gilberto Kassab (PSD). Clique para ampliar

César esclarece brevemente o raciocínio de fomento econômico e substituição populacional: “se o Centro fosse exatamente o que o Alê descreveu genericamente, os espaços não estariam ociosos”, argumentando que “se a oferta cai e a demanda sobe, o preço sobe, se sobe e tem gente mais capitalizada, há uma filtragem dos negócios que puxa o padrão do consumo [para cima]”.

A contradição entre o fomento desejado e o passado sombrio em torno de iniciativas como o Nova Luz, volta à tona após a avaliação das falas de Raquel Rolnik sobre uma tentativa de desenvolvimento que “não destrua”, ou, em outros termos, preserve edifícios mais antigos, mesmo quando estes abrigam um volume relativamente pequeno de pessoas e negócios, ao contarem com limites nas áreas, pavimentos e altura. “Queria eu que fosse simples”, suspira Caio César, enquanto Lucian avalia que “prédios abandonados podem não ser o melhor uso de técnicas de retrofit para habitação, mas ter uso é importante”.

César retoma os disparos ácidos, considerando que é contraditório abrigar um pequeno número de pessoas ao lado de estações com elevada capacidade e destintos potenciais, como Luz e Júlio Prestes, que atendem seis linhas ou serviços metroferroviários: “agora… vamos combinar uma coisa, porque ninguém aqui ganha nada de partido. O que se queria destruir eram pedaços da Santa Ifigênia. O tecido ali é de baixo gabarito, utilizando muito mal a infraestrutura. Nessa hora, precisa existir uma discussão mais pé no chão”.

César também observou que Raquel ofereceu uma proposta mais concreta após falar vagamente sobre reocupar edifícios, a qual envolveria uma agência de desenvolvimento: “essa é a perfeita materialização da ideia do Estado como parceiro de negócios burgueses, mas ok, vamos engolindo as contradições. Viva o Centro III: a reocupação final”, mantendo a acidez: “do jeito que ela descreve, vocês me desculpem, mas parece um misto de Sebrae com imobiliária! O que tem de imóvel vazio deve estar nos classificados… o empreendedor minimamente capaz não consegue juntar anúncio com plano de negócios, com ou sem auxílios e financiamentos?”.

Caio também questiona se a Adesampa já não deveria ter capacidades comparáveis às da agência de desenvolvimento proposta e acrescenta: “precisamos de outra agência?”.


Ou é misto, ou é 24 horas

Guilherme Boulos citou o caso da “Rua Rosa” em Lisboa. Supostamente, seria simples de replicar os resultados da experiência portuguesa em São Paulo. “Sempre digo que, se fosse simples, já teria sido feito”, provoca Caio. Oficialmente denominada Nova do Carvalho, a rua em questão fica no Cais do Sodré e parece ter consolidado uma nova fase de boemia e gastronomia já em 2013, segundo reportagem do Público.

Ainda sobre as políticas de fomento cultural, Boulos defende sublocações, suscitando mais oposição interna: “de novo… precisa? É isso que faz mesmo a diferença? Não tem como a cena musical se desenvolver de outras formas, mais organicamente?”, questiona Caio.

Legenda: Vale do Anhangabaú em março de 2022

A ideia do “Centro 24 horas” surge sem uso misto durante o vídeo. “Precisa ser muito bem pensado, para não se repetir o caso do Anhangabaú do Gehl concedido”, avalia Caio César, que tenta simpatizar com a proposta, insistindo que o novo Anhagabaú não consegue conciliar exploração com eventos privadamente organizados e incentivo à habitação em edifícios do entorno, como a Galeria Nova Barão: “pode não ser imediatamente misto, mas tem gente perto”, lembra. “Francamente, não acho que 24 horas precisa ser sinônimo de barulho e incompatibilidade com moradia. Não tem como ter cafés, restaurantes e bares com música em volume razoável e tratamento acústico?”, questiona.


Especulação ou desenvolvimento imobiliário?

Para Caio César, a visão do Boulos sobre especulação imobiliária confundiu especulação e desenvolvimento imobiliário associado à concentração de propriedades. “As duas coisas até podem existir, mas não é porque há fomento do Estado e moradia social, que o mercado imobiliário não continua existindo”, diz.

“Se melhorar, o preço vai subir, porque a demanda vai subir”, aponta o que considera óbvio, argumentando que “se melhorar, prédios ocupados podem ser disputados, eventualmente indo para o chão, sendo objeto de retrofitting, etc”. “Simplesmente não acho que funciona como ele descreveu”, lamenta.

César ainda alerta que “moradia social, se não evita a formação de gueto, suscita problemas formidáveis, como os que estamos vendo com a PPP habitacional no entorno da Estação Júlio Prestes”, se referindo ao Complexo Júlio Prestes da chamada “PPP da Habitação”, realizada no último governo estadual de Geraldo Alckmin (então, no PSDB). Para o estudante de planejamento territorial, é essencial lembrar que foram os moradores dos edifícios fruto da PPP (parceria público-privada) que pediram o gradeamento das praças Júlio Prestes e Princesa Isabel: “a gente precisa tomar cuidado para que essas populações não contribuam para recrudescer as violências da segregação e a falta de mediação pelo Estado, ambas muito comuns”.

Legenda: Praça Júlio Prestes, cercada em março de 2024, com os novos edifícios da parceria público-privada em segundo plano (primeira foto) e à direita (segunda foto). Clique para ampliar

Outro elemento que merece ser salientado, na visão de César, diz respeito à capacidade de absorver mais habitantes na Zona Central, não só para reduzir o défice, mas também para garantir maior dinamismo comercial e circulação permanente de pessoas, o desafio, segundo o universitário, é equilibrar preservação, demanda e oferta, considerando que muitos dos edifícios, independente de possuírem ou não térreos para exploração comercial, não foram concebidos para uso residencial: “o próprio Boulos admite que adaptar para moradia pode não ser economicamente viável, sendo preferível um novo, o problema é que, com a premissa preservacionista da senhora Rolnik, tudo precisa ser reocupado sem demolições e com a prefeitura agenciando, [supostamente] porque o privado não consegue fazer sozinho”, avalia.

A menção à Raquel Rolnik se dá, como apontou Lucian De Paula internamente, pela professora da USP apontar que tem muitos habitam cortiços e moradias subnormais, sendo necessário aplicar uma política habitacional para estas em formas que mesclem políticas de habitação para as classes médias, além disso, De Paula observa uma preocupação com quem vive de aluguel, formando um grupo que poderia ser alvo de uma política de aluguel social.

César, porém, reitera seu ceticismo diante do desafio exposto anteriormente: “olha, acho tudo isso bem esticado”, diz, “falar em ‘usos múltiplos’ não traduz como o equilíbrio seria atingido”, critica, esperando uma proposta mais concreta por parte de Boulos e, principalmente, da professora, que já ocupou o cargo de relatora especial da ONU (Organizações das Nações Unidas) sobre direito à moradia adequada, entretanto, pondera que a mescla pode ser positiva, mas que “de novo, a discussão continua envolvendo algum grau de substituição populacional”.


Eu acho interessante falar em Serviço Social de Moradia, como propõe a Raquel. Baita desafio, porque não é só quem está em situação de rua que precisa de algo assim. Entendo que é uma política focal com recorte, mas olha... não sei como farão sem passar por licitações e burocracias que podem consumir anos. Supostamente, bastaria a prefeitura, ela mesma, alugar e gerenciar os beneficiários. Parece bom demais para ser verdade, mas acho que dialoga com algumas discussões nossas do passado, sobre a Cohab ter um ‘direito de preempção’ em lançamentos e passar a capturar parte da produção do mercado
Caio César, um dos membros-idealizadores do Coletivo

Em suma, a oferta de moradia subsidiada poderia permitir que trabalhadores de base residissem no Centro com dignidade, mesmo com baixa renda, contudo, o desafio é mesmo entender como o tecido vai se desenvolver e quais serão as composições resultantes ou, em outras palavras, qual o rendimento mínimo de facto para viver dignamente no Centro e girar uma economia reaquecida e quais populações se encaixam nos critérios.


Zeladoria e urbanização difusa

Finalmente, sobre a questão da zeladoria, existem duas contradições que precisarão ser encaradas por Boulos e sua equipe, caso o pleito termine com a vitória da chapa: (i) o desafio da zeladoria numa mancha urbana de grandes dimensões, que cresceu orientada por uma lógica que normaliza uma urbanização difusa ou espraiada (do inglês urban sprawl, ou espraiamento urbano) e; (ii) o desafio do contraste entre zeladoria em áreas centrais e áreas periféricas, com moradores da periferia se sentindo reféns de uma zeladoria de “segunda classe”.

Para Caio César, ambas as contradições estão no cerne de suas preocupações após as colocações presentes no vídeo: “sobre a zeladoria, concordo que é importante, mas minha provocação é simples: se a cidade não tivesse espraiado, seria mais fácil; também provoco que é muito bonito ouvir sobre ‘zeladoria permanente’ com investimento forte no Centro, mas eu exijo uma calçada tão boa quanto aqui na Leste, um mobiliário tão bom quanto aqui na Leste”, diz.

Finalmente, César acredita que os dois problemas estão ligados à demanda por vias asfaltadas que surge com o espraiamento, que não é mera expansão da mancha urbana, mas sim uma expansão de um modelo de urbanização que continua orientado pelo automóvel, por isso, explica que é preciso reduzir a quantidade de asfalto: “não adianta a gente achar que negligenciar recapeamento é a resposta, precisa ter uma redução do viário”, argumenta, enquanto sobe o tom mais uma vez: “essa demanda de recap[eamento] vai continuar drenando recursos, é a nossa versão tropical das disputas que vemos nos departamentos de transporte dos Estados Unidos, em outras palavras, um monte de lugar precisaria não ter um viário para carro, ou [precisaria] ter um viário com menor necessidade de manutenção” e conclui: “um desafio extremo, que não parece ser levado a sério”.


Encerramento

No geral, a primeira impressão envolvendo uma discussão organizada com foco em transporte público foi aquém do que gostaríamos, no máximo, bem mediana, sem empolgar ou impressionar. O Coletivo convida toda a população para se envolver nas discussões e exercer pressão constante em torno das candidaturas. São Paulo não pode tolerar mais retrocessos e precisa produzir avanços significativos em matéria de produção de uma cidade humana, racional e acolhedora.


Colaborações: Eduardo Ganança e Lucian De Paula



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