Má arquitetura não se combate vetando prédios

Por Caio César | 12/08/2024 | 12 min.

Legenda: Verticalização na face da Estação Brás voltada à Rua Domingos Paiva: teor clubístico, que seguiu endossado pelo marco regulatório de 2003, resultou em empreendimentos sem fachada ativa e predomínio de metragens para famílias de classe média alta, desestimulando a caminhada e a utilização dos transportes públicos
Exigir boa arquitetura ainda pressupõe demolir casas e, por isso, não interessa a uma coalizão que tem angariado progressistas e reacionários. São Paulo precisa de mais prédios e a discussão da verticalização não pode ser contaminada pelo desejo (ainda que velado) de expulsar pessoas indesejáveis e esgarçar a noção de memória e preservação história

Índice


Em 9 de agosto, nosso membro Wesley Café Calazans comentou sobre como o discurso radicalmente contra prédios parece ser alimentado pela ausência de boa arquitetura em muito do que é produzido na capital paulista. A partir daí, verborrágico como sou, teci uma série de comentários, boa parte dos quais foram utilizados para construir este artigo.


Escassez e hipocrisia

Estou certo de que a má arquitetura contribui para o rechaço à verticalização, entretanto, suspeito ser mais fácil se aproveitar do problema, afinal, ele é um excelente pretexto para querer mandar “os amiguinhos” para longe, afinal, exigir boa arquitetura ainda pressupõe demolir casas.

Uma rara autocrítica

Quando observo a paisagem, fico com a impressão de que é mais fácil que a produção de mercado popular seja rotulada como feia e sem amenidades, do que os mais caros e clubísticos, entretanto, a questão do empobrecimento arquitetônico também envolve a pobreza intelectual da elite e o desejo de segregação, por isso, ainda que a arquitetura e os materiais empregados sejam superiores nos lançamentos do Centro Expandido, a arquitetura problemática continua.

Se existisse uma maior diversidade de classes e usos, e não fossem admitidos elementos clubísticos, forçando uma cidade com mais amenidades, talvez os edifícios precisassem de uma arquitetura mais cuidada, mas é difícil saber. Há escassez de moradia e planta e localização parecem ser os dois principais critérios, ficando a arquitetura em último plano.

O poder público também ajudou bastante com péssimos conjuntos habitacionais (como o Teotônio Vilela, do qual fui morador) e fomento a empreendimentos do PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida) tão ruins quanto os conjuntos estatais.

Legenda: Padaria Vitória Régia, no térreo de um edifício no bairro Campestre, na vizinha Santo André: enquanto fachada ativa e mescla de usos não são obrigatórios pelo ordenamento, o mesmo não podemos dizer de recuos e farta oferta de vagas, negando o potencial de compactação e humanização do tecido oferecido pela Estação Prefeito Saladino, a cerca de 1 km de distância. Fotografia de 08/08/2024. Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

Ironicamente, a única cidade da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) que esboçou uma autocrítica à proliferação de grandes condomínios-clubes foi… São Paulo. Justamente, a capital, que durante a gestão Marta Suplicy (PT), convivia com obras de grandes condomínios para classes médias e altas viciadas em guaritas e cancelas, passou, como produto do novo ordenamento aprovado pela gestão Fernando Haddad (PT), a contar com um estoque novo de quitinetes, inclusive nas periferias.

Prólogo O artigo em questão é uma adaptação de uma resposta que seria redigida numa publicação no Instagram, contra-argumentando com a senhora Nara Kassinoff, que se apresenta como fotógrafa de rua, designer gráfica e ourives. Legenda: Perfil de Nara Kassinoff no Instagram em 20/03/2024 Já não fazia muito sentido manter a discussão por lá, tanto pelo tom adotado quanto pela importância do tema, entretanto, como a senhora Kassinoff optou por enviar um “textão malcriado” e limitar as menções, adaptar a resposta na forma de um artigo acabou sendo inevitável.

A força das quitinetes, em alguns casos, com altos preços e metragens inferiores a 30 m², foi notada. E as críticas vieram, muitas vezes, sem perceber que a dicotomia entre imóveis luxuosos e pequenos apartamentos é produto da restrição de oferta defendida por uma coalizão de progressistas e conservadores. A captura das quitinetes para empreendimentos de locação temporária também deveria suscitar reflexões quanto ao mau funcionamento do atual mercado hoteleiro.

Infelizmente, o ordenamento paulistano diz que estações e corredores de ônibus possuem o mesmo potencial de verticalização e adensamento, independente de serem periféricos ou centrais, sendo intuitivo que o Centro Expandido apresente maior procura e maior chance de já ter sido mais explorado no passado. O resultado é uma desconexão entre oferta e demanda.

Além disso, apenas o Centro Expandido possui, dentro ou no seu entorno mais próximo, grandes bairros de mansões, o que cria restrições severas à oferta.

Miolos desmiolados

A nossa noção, digna de cidades provincianas do Texas, para "miolo de bairro", também não ajuda: simplificadamente, o ordenamento diz que, se um lote está a 1 km de uma estação em área central, ele integra o miolo de bairro e, se é miolo, tem gabarito de 8 andares. Quem vai conseguir explorar isso mercadologicamente?

É verdade que, se for uma zona de centralidade local, o gabarito basicamente dobra, condição que pouco ou nada diz no Centro Expandido, pois ainda é muito restritiva.

Legenda: As extremamente limitadas áreas de influência da infraestrutura de transporte público, recuperadas no âmbito da tentativa de revisão do Plano Diretor Estratégico pela atual gestão, por meio de um diagnóstico inicial. Clique no recorte para abri-lo e ampliá-lo

Já no passado, a cidade virava as costas para o papel da infraestrutura, deixava tudo na mão do mercado. Foram décadas assim. O mercado, por sua vez, não atuava no vácuo. Se quem pode pagar é racista, preconceituoso e quer segregação, o que você acha que vai sair? Se as pessoas que podem pagar odeiam o transporte público, você acha que teremos alinhamento entre infraestrutura e edifícios?

Legenda: Legado de gestões como a da Marta: quadras inteiras ao longo de ruas como Serra de Bragança e Monte Serrat viraram condomínios clubísticos orientados em torno do automóvel, produto de uma exploração mercadológica que, apesar de difusa, homogeneizou quadras na área de influência das estações Tatuapé e Carrão. Em todos os casos, a distância até a Estação Carrão é de cerca de 1 km. Imagens extraídas do Google Earth. Clique na imagem para abri-la e ampliá-la

Eis o problema: a discussão culpa um mercado metafórico e incorporadoras metafóricas, quando não é sobre isso. É sobre relações sociais e de poder!

Quando a pressão era menor, estava tudo bem para as classes que hoje reclamam. Se a cidade de São Paulo estava transbordando e resultando numa Itaquaquecetuba com 40% de área formada por loteamentos clandestinos sem fundiário regularizado, quem se importava? Ninguém, oras! Da mesma forma, ninguém se importava quando faziam moradia social estatal, privilegiando os piores lugares (os mais baratos, os mais insalubres).

Mesmo já tendo dito que há alguma dose de complexidade e desconforto no passado, a discussão é bem simples:

  • Precisa de mais gente morando no Centro Expandido, principalmente perto do transporte;
  • Não podemos admitir guetos, a moradia precisa mesclar rendas, classes, usos;
  • A regulação deve viabilizar excelente arquitetura; e
  • O poder público não pode abdicar de seu papel como produtor do espaço.

Simples, né? Já agora, o que encontramos por aí?

  • Prédio nadinha, casa rainha; e
  • Praça acho graça, prédio acho tédio.

E um adendo antes da próxima seção: noções como memória e preservação não podem ser capturadas para criar um “zoneamento paralelo”, sob pena de esvaziar a proteção ao patrimônio histórico, resultando em danos irreversíveis para imóveis que verdadeiramente deveriam ser preservados. Sempre vigilante, o COMMU (Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana) já está ciente de duas campanhas desonestas que atacam a verticalização para preservar privilégios de uma minoria milionária, e não compactuará, nem oferecerá palco, principalmente ao identificar o mau uso de instrumentos voltados ao tombamento de edificações.


Rompendo com o subúrbio vertical

Minha tese é que nós, paulistanos, criamos uma variação da relação casa-comércio que existe nos Estados Unidos, pois verticalizamos o subúrbio residencial, mas horizontalizamos o comércio. Trata-se de uma dicotomia que foi e continua sendo muito bem aceita, principalmente dentro de um regime de exploração que, ao rejeitar a infraestrutura de transporte, permite a formação lenta de um estoque, a ser explorado de forma difusa.

Pequenos clubes, grandes negócios

O que acabo de descrever parece resultar numa produção muito mais voltada para quem tem mais dinheiro, consequentemente, nem quitinete de 30 m² ou menos tem vez, porque não precisa, ou seja, dentro do que podemos rotular como um progressismo liberal gerenciador de miséria (para parafrasear um professor meu), o PT (Partido dos Trabalhadores), mais uma vez, conciliou de forma tóxica.

Esse processo só foi interrompido porque o atual ordenamento restringe o gabarito, logo, se você podia comercializar até 50 andares antes (como foi o caso da Porte, com o Figueira Altos do Tatuapé), e o m² é um dos mais caros da cidade, porque o bairro é um dos mais desejados da cidade, não faz sentido explorar apenas 8 andares.

Legenda: Edifício Figueira Altos do Tatuapé, um condomínio residencial de luxo com 52 pavimentos, observado das ruas Serra de Japi (fotografia à esquerda) e Itapeti (fotografia à direita). Fotografias de 15/03/2020. Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

Mas não para por aí: sabemos que flexibilizar o gabarito novamente, como se tentou na revisão da atual gestão rocambólica, desmontaria o plano idealizado na época de Fernando Haddad, porque desincentivaria o DOTS (Desenvolvimento Orientado pelo Transporte Sustentável).

Como melhorar a situação? Reduzindo as restrições sobretudo no Centro Expandido. Leia-se: tornando todo o Centro Expandido, ou em grande parte dele, porque duvido que deteremos ZERs e ZPRs (zonas exclusivamente residenciais e predominantemente residenciais, respectivamente) em ZEU (zonas eixos de estruturação urbana).

Além do mais, a prefeitura precisaria começar a fazer cidade. Quando a prefeitura cobra outorga ou recebe ISS (Imposto sobre Serviços) considerável das áreas centrais, ela precisaria ter capacidade de reinvestir para poder criar mais ZEUs, se possível, fazendo VLTs (Veículos Leves sobre Trilhos, como são chamados os bondes modernos).

E mais: a mesma prefeitura poderia identificar áreas que já sofreram descaracterização pelo liberalismo excessivo de outrora e tentar reequilibrar. Instrumentos como OUCs (operações urbanas consorciadas) também podem servir para isso.

Nada que estou discutindo aqui, embora legalmente possível, tem espaço na agenda, graças à coalização entre progressistas e conservadores.

Coalizões e a conivências aburguesadas

Saliento ainda que, numa clara demonstração de como o mercado atua de forma ruim, com permissividade histórica, houve uma insistência em simplesmente continuar o eixo das Nações Unidas, com o PIU (Projeto de Intervenção Urbana) Arco Jurubatuba, repetindo um receituário que tem sido aplicado desde os anos 1970, pelo menos.

Mesmo com a tramitação do PIU Jurubatuba, no lugar de uma discussão mais qualificada, que deveria envolver um levantamento dos landbanks (como são chamados os estoques de terras de atores do mercado) e clareza quanto ao lobby (termo usado para quem tenta exercer influência e garantir interesses próprios ou de outros), a coalizão reacionária de oposição preferiu um formato genérico de caça às bruxas, com um verniz anticapitalista mentiroso e dissimulado, visando preservar outras áreas centrais mais estratégicas.

Em outras palavras, o PIU Jurubatuba era ruim, mas entre ele e colocar mais gente para morar em Pinheiros, na Vila Mariana, na Vila Madalena, etc., a resposta, tanto de progressistas, quanto de reacionários fisiológicos, foi óbvia.

E mais (de novo): houve um silencioso apagamento de OUCs anteriores, como a Lapa-Brás e Água Branca, que deveriam ter condicionado uma requalificação de tecidos centrais subutilizados, dentro da vocação de serviços sofisticados que a metrópole adquiriu à medida que se descentralizou e desindustrializou.

Tudo isso ficou e continua ficando em segundo plano, numa discussão que não avança para além de uma dicotomia rasa prédio × casa.

É lamentável, entretanto, como as objeções são muitas, e o pessoal do Centro Expandido continua fazendo ataques em conjunto com uma esquerda burra e oportunista, não há como avançar para além do raso, mesmo que a disputa pudesse ser resumida corretamente nessa dicotomia, porque é, sim, um embate morfológico, o qual amarra relações de consumo e de construção mercadológica, intimamente ligadas com estruturas de dominação.

Flexibilização para o resto de nós

Em todo caso, eu continuo insistindo na tese de que, fora do Centro Expandido, em mercados que não são de luxo, como o de vários da Zona Leste (Vila Formosa, por exemplo), o ordenamento da última gestão do PT foi benéfico. A tipologia flexível "prédio de até 8 andares" não existia. E não havia nada que ficasse numa posição intermediária e fosse novo, mas agora há, o que parece resultar em, pelo menos, três pilares:

  1. Atividade de construção civil que não fica restrita a grandes empreendimentos ou à expansão do tecido formado por casas térreas e assobradadas fruto de autoconstrução;
  2. Possibilidade de financiamento, porque o incentivo para compra de imóvel novo costuma ser maior; e
  3. Moradia nova com adensamento de antigos subúrbios operários orientados pelo carro e pelo ônibus.

A única coisa ruim da flexibilização do Haddad para o que se chama de miolo de bairro, se encontra zoneado como Zona Mista, e está fora do Centro Expandido, é que o flexibilizado não tem incentivo para ser decente, assim:

  • Ele pode ter fachada bem introspectiva, bem ruim;
  • Ele não precisa ter comércio; e
  • Ele pode ter vaga de garagem.

Fica a critério do mercado. E é um mercado menos capitalizado, menos sofisticado, que tende a apostar (não existe sondagem, mapeamento, estudo), formado por anônimos, pelo filho daquele português que tinha um monte de casas, e percebeu que o perfil mudou, que os imóveis não são mais interessantes para serem preservados e começa a subir prédios dentro desse regime. O anônimo não vai fazer nenhum tipo de estudo para pensar em comércio ou garagem com cuidado.

Além disso, a ausência de vaga de garagem, vejam só vocês, acontece em áreas nas quais não há a remota possibilidade de ir a pé para uma estação, porque o público-alvo, que não partilha da realidade de Pinheiros, usa ônibus.

Legenda: No centro das fotografias, novos edifícios erguidos após a flexibilização. Ambos estão localizados na Vila Formosa, não possuem fachada ativa e apresentam morfologias distintas. Fotografias de 04/11/2023 (esquerda) e 28/07/2023 (direita). Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

Claro que alguns dos edifícios dentro dessa lógica de flexibilização ficarão próximos de estações no futuro (caso de vários nas cercanias das futuras estações da expansão da Linha 2-Verde em direção à Penha), mas é bem fácil passar de 1, 2, 3 km.

A cidade é simplesmente grande demais.


Encerramento

Tudo isso para dizer que precisávamos ter avançado mais na revisão: permitido um maior adensamento no Centro (o que inclui reavaliar, pelo menos, tamanho das ZEUs e, logo, noção de miolo), buscado ampliar o DOTS com qualificação do que o permite (de novo, mexer na noção de miolo) e buscar meios de estimular bons edifícios de pequeno porte na maior parte da cidade.

Não fizemos nada disso. Fomos dominados por Rosannes Brancatellis, Verônicas Bilyks, Sergios Rezes, Igores Pantojas, Ivans Maglios e por aí vai…


Colaborações: Wesley Café Calazans



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