Por Caio César | 30/08/2024 | 10 min.
Índice
Introdução
Em dezembro de 2023 — sim, este texto está sendo publicado depois de meses na gaveta —, trouxe alguns artigos para discussão entre membros ativos do COMMU (por meio do grupo fechado que possuímos no Telegram). Curiosamente, os artigos foram encontrados por mim acidentalmente, a partir de uma sugestão do YouTube para um vídeo.
O que começou com uma severa denúncia sobre más condições de trabalho terminou com longas e dramáticas histórias sobre a crise habitacional que assola o estado de Connecticut, na metrópole tri-estadual que também envolve os estados de Nova Iorque e Nova Jérsei, na costa leste dos Estados Unidos.
Uma das pessoas afetadas, Crystal Carter, se destacou perante o meu olhar de planejador: embora arriscasse fortalecer estigmas sobre determinadas localidades, Carter não podia negar a probabilidade de comprometer seu próprio futuro e o de sua família ao selecionar um endereço com péssimos indicadores e flagrantes problemas sociais e econômicos.
Tecnicamente, ela observou, ainda que sem saber, um fenômeno chamado de path dependency (trajetória dependente ou dependência histórica, em tradução livre para o português), ou seja, Carter notou que determinados territórios e suas populações são prisioneiros de um determinado caminho, com imensas dificuldades para escapar de um destino pouco feliz.
Carter, assim como muitos de nós, que vivemos na Região Metropolitana de São Paulo, não podia pagar facilmente por um imóvel numa localização com melhores indicadores socioeconômicos e, potencialmente, maior capacidade de oferecer qualidade de vida, mesmo restringindo sua busca aos vastos subúrbios da metrópole de Nova Iorque.
Sua dificuldade expôs uma intrincada teia de posturas racistas, dentro e fora do Estado.
Motivadores
A seletividade de Carter é o aspecto nevrálgico aqui, e o elemento que suscitou a escrita deste artigo em primeiro lugar.
Outro importante elemento foi a reportagem d’Agência Mural sobre a delicada situação da assiduidade escolar na Cidade Tiradentes, um núcleo de favelas e conjuntos habitacionais que foi utilizado para manter populações indesejáveis longe do Centro Expandido e, consequentemente, facilitar posturas anti-migração e pró-especulação imobiliária (por meio da escassez e concentração de renda e patrimônio).
Isoladamente, o drama escolar já bastaria para suscitar uma reflexão sobre seletividade em relação à possibilidade de morar ou continuar morando na Cidade Tiradentes, entretanto, a Linha 3064-10 (Cidade Tiradentes-CPTM Guaianazes) da SPTrans (São Paulo Transporte), citada na reportagem pela má qualidade de sua frota, e operada pela ex-cooperativa Transunião, estabeleceu o elo que eu precisava para poder escrever sobre posturas seletivas dentro da nossa região metropolitana.
Quando observamos as características da linha citada e começamos a estabelecer nossas percepções em torno das relações funcionais, podemos desenhar o seguinte quadro:
- A linha oferece baixíssimo desempenho, independente de possuir frota em más ou boas condições, o que pode decorrer do mau uso e ocupação do solo da região, sendo um problema de difícil (e improvável) solução antes do falecimento do indivíduo tomador de decisão;
- A conexão oferecida pela linha, na Estação Guaianazes, é sabidamente problemática, justamente por concentrar a demanda de muitas periferias que só existem porque nossa sociedade é profundamente canalha;
- A utilização da linha está associada à condição de habitante de um vasto perímetro com múltiplos problemas de desenvolvimento humano, logo, sua utilização é parte de um contexto mais abrangente de perpetuação da pobreza e das desigualdades. Novamente, a resolução de muitos dos problemas não deverá ocorrer num horizonte de tempo compatível com as necessidades do indivíduo tomador de decisão.
Em outras palavras, uma pessoa com um olhar similar a Crystal Carter, com ou sem subsídios (como acesso ao programa Minha Casa Minha Vida para aquisição de imóvel novo), tenderia a evitar as áreas de influência direta e indireta da Estação Guaianazes, o que inclui toda a Cidade Tiradentes e o território servido pela Linha 3064-10.
E é aí que entra o “pulo do gato” deste artigo: a importância da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e de um olhar que não se prenda a um dos componentes de um CEP, o município, ou seja, de um olhar que seja capaz de verificar que uma ou mais áreas são problemáticas e avaliar a possibilidade de morar mais longe, e, simultaneamente, contar com um transporte melhor e mais rápido, anulando ou atenuando qualquer prejuízo com a extensão do trajeto.
Trevas no horizonte E se Tarcísio de Freitas (Rep), atual governador do estado de São Paulo, conseguir avançar com o rolo compressor? E se todas as linhas do METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo) e CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) forem privatizadas? E se a privatização selar um nível de serviço degradado para toda a malha, similar aquele das linhas 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) e 9-Esmeralda (Osasco-Mendes·Vila Natal)?
A Linha 3064-10, numa viagem de ponta a ponta, compromete, pelo menos, 55 minutos. Sabendo disso, podemos traçar os seguintes cenários em relação à Linha 11-Coral (Luz-Estudantes), que atende a Estação Guaianazes com dois serviços:
- Partindo de Estudantes: 38 minutos (diminuição percentual de 31%);
- Partindo de Mogi das Cruzes: 35 minutos (diminuição percentual de 36%);
- Partindo de Braz Cubas: 30 minutos (diminuição percentual de 45%);
- Partindo de Jundiapeba: 25 minutos (diminuição percentual de 55%).
Como pode ser observado, o desempenho da linha de ônibus é tão pífio que, diante da região problemática em que se insere, a ideia de residir em Mogi das Cruzes parece começar a fazer sentido. Pesa ainda o fato de que a suscetibilidade dos trens a interferências é bem menor, o que os torna muito mais confiáveis do que os ônibus.
Avaliando o parque imobiliário
A principal dificuldade, portanto, envolveria localizar imóveis (para compra ou locação) dentro de um orçamento compatível com a Cidade Tiradentes, mas ao longo das estações localizadas em território mogiano.
Obviamente, Mogi das Cruzes não é uma panaceia: os distritos de Jundiapeba e Braz Cubas também são periferias, tanto em relação a São Paulo, quanto em relação aos polos mais próximos, como Mogi das Cruzes, município a qual pertencem, e Suzano, próximo município a caminho de São Paulo pela Linha 11-Coral. A questão é que, mesmo com problemas e estigmas, quando comparados com a Cidade Tiradentes, estes distritos ainda podem oferecer maior qualidade de vida com o mesmo impacto no deslocamento.
Ademais, a relação centro-periferia, no caso de Jundiapeba e Braz Cubas, é minimizada pela escala da urbanização e pelo desenvolvimento socioeconômico de Mogi das Cruzes (e, em segundo lugar, de Suzano). Em outras palavras, é possível acessar um tecido sofisticado de estabelecimentos comerciais e serviços com um menor impacto no deslocamento, além de equipamentos públicos (como parques e centros culturais, por exemplo).
A tabela a seguir apresenta a relação do parque imobiliário avaliado durante a confecção do artigo.
O mapa a seguir georreferencia os imóveis para melhor compreensão de sua posição em relação à malha do Trem Metropolitano e à Linha 3064-10.
Observação: para facilitar possíveis comparações por parte da pessoa leitora, foram incluídas unidades habitacionais construídas pela antiga Cecap (Companhia Estadual de Casas Populares), predecessora da atual CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), em Guarulhos. O Parque Cecap, oficialmente Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, é um conjunto habitacional projetado pelo arquiteto Vilanova Artigas, objeto de discussão até os dias atuais, com características que podem ser consideradas superiores em relação aos conjuntos da COHAB-SP (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) na Cidade Tiradentes.
Jundiapeba
Extraindo manualmente dados do site VivalReal, consideramos que a compra de um imóvel em Jundiapeba começa a fazer sentido a partir de R$ 160 mil, valor compreendido como dentro da realidade do mercado imobiliário de Cidade Tiradentes.
Por menos de R$ 200 mil, é factível encontrar apartamentos com aproximadamente 50 metros quadrados num raio de até 1,5 km da Estação Jundiapeba (cerca de 15 minutos a pé, distância considerada aceitável por nós). Em linhas gerais, pela própria configuração do distrito, a distância máxima não ultrapassa muito mais do que 2 km, o que torna o uso da bicicleta convidativo, pois o relevo é plano.
Em comparação com a Cidade Tiradentes, Jundiapeba oferece a possibilidade de buscar imóveis maiores em condomínios horizontais, sem comprometer drasticamente o orçamento.
Braz Cubas
O mercado imobiliário de Braz Cubas é mais desafiador e a oferta de imóveis abaixo de R$ 200 mil é consideravelmente menor, além disso, a expansão do tecido em direção à rodovia Mogi-Bertioga torna o distrito muito mais espraiado e sujeito a uma ocupação mais horizontal e menos eficiente.
A permissividade do marco regulatório mogiano, estimulando a presença de novos loteamentos horizontais, como Paradise Garden e Paradise View, e a especulação imobiliária com terrenos ociosos também não contribui para que o distrito apresente feições mais compactas e uma melhor oferta de apartamentos nas adjacências da estação.
Prólogo Enquanto alguns acreditam (ou fingem que acreditam) que a revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo foi adiada por vontade popular, e não pela pressão de grupos de moradores endinheirados dos chamados “bairros tradicionais” ou “bairros nobres” situados dentro do Centro Expandido, as restrições da capital só reforçam apostas mercadológicas em municípios da região metropolitana que, por melhores que sejam, estão geograficamente distantes dos locais com maior concentração de postos de trabalho.
Sede
O distrito Sede abriga as duas áreas centrais de Mogi das Cruzes: Centro Histórico e Tradicional (Estação Mogi das Cruzes) e Centro Cívico (Estação Estudantes).
As duas centralidades não oferecem preços tão competitivos para populações de menor renda, afinal, abrigam alguns dos tecidos mais sofisticados da cidade, incluindo uma vizinhança boêmia e gastronômica, no caso da face sul da Estação Estudantes.
Entretanto, como demonstrado no artigo “Sucateamento da CPTM pode potencializar relações tóxicas com o território”, existem imóveis abaixo de R$ 300 mil com relação custo × benefício interessante, localizados no Novo Mogilar, a poucos minutos a pé da Estação Estudantes.
Como a pesquisa indicou a presença de imóveis precificados em 300 mil reais ou mais na Cidade Tiradentes, é oportuno salientar que, a partir daí, Mogi das Cruzes oferece possibilidades interessantes no distrito Sede, ainda que a relação m²/R$ não seja a mesma, podendo resultar num imóvel de menor metragem. Para fins de brevidade, este artigo limitou o preço máximo em 250 mil reais.
Conclusão
O solo ao longo do Trem Metropolitano da CPTM nem sempre é ocupado para maximizar a oferta de moradia, uma vez que os planos diretores (incluindo aqui o plano diretor mogiano) não são obrigados a oferecer qualquer tipo de solidariedade em escala metropolitana, porém, apesar da ocupação fragmentada e das irracionalidades, pode ser factível mudar de uma periferia para outra, de forma a maximizar as possibilidades a partir do acesso à infraestrutura de transporte de alta capacidade.
Introdução Começo este artigo dizendo que as discussões mais importantes parecem surgir pelos motivos mais errados. O caso do adensamento e da verticalização numa das mais populosas regiões do estado de São Paulo, não é exceção. E não é a primeira vez. Contexto: a Porte, uma construtora sediada no Tatuapé, responsável pela verticalização de parcelas relevantes da região, com um passado talvez não muito brilhante em termos arquitetônicos, decidiu que viraria a página: adotou uma linguagem arquitetônica mais contemporânea, passou a ser mais cuidadosa e decidiu incorporar uma espécie de “espírito bratkeano”, tomando para si o desafio de estimular o surgimento de uma “Berrini local”, batizada de “Eixo Platina”, em alusão à Rua Platina, paralela à Radial Leste.
Em suma, ainda que o uso do solo não seja o melhor possível, a oferta de imóveis é inegável, sendo razoável exercitar a ideia de que abandonar territórios negligenciados pode oferecer alternativas a populações que, em virtude do senso comum, desprezariam ou nem mesmo cogitariam a possibilidade de residir em outros municípios da região metropolitana.
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