Por Caio César | 18/09/2024 | 9 min.
Decidi romper com o silêncio após sofrer ao longo do processo de revisão do ordenamento territorial da capital paulista, que levou alguns anos para ser concluído, atravessado por uma pandemia e tentativas de interdição de uma esquerda sem maioria no parlamento municipal. Enquanto as engrenagens legislativas giravam, ora mais depressa, ora nem tanto, eu busquei fazer um debate relativamente pacífico, quase acadêmico, mas esbarrei na profunda antipatia de sujeitos desacostumados a terem suas posições de poder e prestígio questionadas dentro do campo progressista.
Com o antagonismo crescendo, inicialmente, tentei dialogar pelo X, sem sucesso. Então, tentei dialogar pelo Instagram, sem sucesso. Restou escrever. O que mais uma figura em posição marginal no debate poderia fazer?
O artigo a seguir é uma adaptação de uma sequência de posts no X, feita em 22/12/2023 pelo nosso membro Caio César, que marcou a Rede Nossa São Paulo. Naquele dia, a Rede deu ênfase para dois parágrafos da reportagem “Novo zoneamento de SP melhora a sua vida? Veja o que dizem construtoras, especialistas e vereadores” do Estadão. Legenda: Story publicado pela Rede Nossa São Paulo no Instagram Mais uma vez, a Rede Nossa São Paulo está negando as próprias pesquisas que conduz.
Pensando bem, um empreendimento historicamente bem capitalizado, como a Rede Nossa São Paulo, em nenhum momento precisaria se dobrar a um ou mais elementos da população alijada da política, como eu. A Rede Nossa São Paulo, apesar de opinar recorrentemente sobre processos participativos, não se mostra disposta a encarar alguns dos pequenos desafios ligados à participação popular: acolher indivíduos. Trata-se, resumidamente, de uma relação assimétrica, na qual uma empresa sem fins lucrativos percorre extensos corredores da política e da sociedade, suplantando qualquer grito que não seja suficientemente sofisticado em termos de capital humano e financeiro.
Considerando o último balancete publicado pelo Instituto Cidades Sustentáveis, responsável pela Rede Nossa São Paulo, temos entre os financiadores nomes como Instituto Arapyaú (ligado a Guilherme Leal, um dos fundadores da Natura), Open Society, Instituto Clima e Sociedade, Fundação Ford, GEF, Fundação Van Leer, União Europeia e WRI Brasil, na maioria das vezes, com receitas tanto em 2020, quanto em 2019. Foi por meio dos recursos da Fundação Ford que a iniciativa de jornalismo de dados 32xsp foi criada, terminando em 2021, quando os recursos provavelmente se esgotaram.
A trajetória da Rede Nossa São Paulo, assim como a do Coletivo, tem elementos em comum: as duas organizações estão tentando disseminar uma agenda, pois desejam incidir na elaboração de políticas públicas sem, no entanto, formalizar um partido político. Até aí, nada de errado. A diferença é que o Coletivo, como já deve ter ficado óbvio, é praticamente um esforço de, quando muito, meia dúzia de pessoas, enquanto a Rede Nossa São Paulo tem capacidade para contratar pesquisadores e atua profissionalmente.
Em outras palavras, no mercado do ativismo ou no mercado de causas sociais, um pequeno grupo de indivíduos não é páreo para disputar espaço com uma empresa que contrata profissionais de alta remuneração. Nenhum de nós tem a militância como principal ocupação, atuando voluntariamente segundo as próprias possibilidades. Somos, acima de tudo, uma organização de pessoas trabalhadoras, nem sempre bem remuneradas. Por aqui, não há capital intelectual ou esforço politizante capaz de competir.
Como já havia atuado como mão de obra não remunerada no passado, quando tentava influenciar mandatos oferecendo cartas-compromisso para que assinassem, acabei parando em um grupo no WhatsApp com uma verdadeira “seleção de craques do ativismo de causas urbanas de São Paulo”. Não havia sido a primeira vez que fui trouxa, mas foi definitivamente a última, principalmente após perceber que não se criava uma rede de solidariedade entre participantes, nem que havia um sistema de acompanhamento das candidaturas signatárias que venciam eleições.
Considerando que publiquei um vídeo reforçando as críticas à Rede Nossa São Paulo e, mais de quatro meses depois, o quadro permanecia o mesmo, achei que não estava sendo suficientemente direto: quando o coordenador apareceu no grupo para divulgar o eixo de mobilidade de mais uma edição da pesquisa Viver em São Paulo, eu decidi me pronunciar.
Minhas falas, é claro, foram firmes. Eu não pratico a diplomacia do oprimido. A Rede Nossa São Paulo, ao banalizar, por meio de figuras como o coordenador Igor Pantoja, a noção de descentralização, claramente visando proteger paisagens que contribuíram para excluir e aprofundar péssimas práticas de urbanização, praticou uma violência. Cobrar explicações de um pesquisador com doutorado num espaço supostamente protegido é uma atitude razoável.
Saliento que em nenhum momento a Rede Nossa São Paulo realizou oficinas participativas descentralizadas ou foi um modelo a ser perseguido pelo poder público, muito pelo contrário. O “pacote” sempre vem pronto e sua confecção não é transparente. Os componentes reacionários da agenda da Rede Nossa São Paulo, que provavelmente são nutridos pelas próprias relações de classe socioeconômica que permeiam toda a estrutura da empresa, podem parecer sutis a quem não tem familiaridade com as temáticas, mas ressalto que são relativamente simples de serem notados.
Em linhas gerais, entristece observar que a Rede Nossa São Paulo, mesmo sabendo da má qualidade de vida de várias das periferias paulistanas, opta por transformá-las numa espécie de ativo (um token, portanto) para fortalecer um discurso raso e perigoso de descentralização, cujo principal objetivo não é o desenvolvimento (independente do tipo), mas a preservação de paisagens que não racionalizam o uso da infraestrutura de transportes públicos.
A descentralização defendida pela Rede Nossa São Paulo, sobretudo na figura do coordenador Igor Pantoja, parece visar tão somente atenuar a pressão sobre bairros centrais tradicionais, que concentram renda e geração de empregos, e cujas densidades demográficas são extremamente tímidas em comparação com uma série de bairros periféricos (para ter uma noção do problema, consultar materiais aqui, aqui e aqui). Eu não serei enrolado e não servirei de bucha de canhão para quem quer morar em mansões ou sobrados de milhões e milhões de reais em bairros do Centro Expandido.
Ironicamente, a Rede Nossa São Paulo não só continua informando que está sediada na Alameda Santos, um endereço extremamente caro e central, como divulgará os resultados da pesquisa de mobilidade num endereço da Rua Dr. Plínio Barreto, também bastante central. Por que não dar o exemplo?
Finalmente, saliento que minhas críticas em torno do que considero como uma dupla violência pela simultânea banalização da possibilidade de descentralizar a geração de empregos e, consequentemente, a possibilidade de melhorar o desenvolvimento humano, somada à postura encastelada e opaca, não deve ser confundida com a novíssima iniciativa Descentraliza SP. Em relação à Descentraliza SP, o Coletivo fez apenas uma provocação comportada no Instagram, questionando se o caminho da autonomia, seguido por municípios como Osasco, não seria melhor. A campanha da Rede Nossa São Paulo defende um caminho diferente.
A seguir, você confere minha manifestação, a réplica e a tréplica. Em alguns momentos, faço referência à Rede Nossa São Paulo pela sigla RNSP ou apenas por Rede.
Caio César: Igor, o problema da RNSP é que já sabemos que os dados são terríveis, pesquisa a pesquisa, ano após ano, entretanto, não adianta você ou outra figura pequeno-burguesa (da Rede ou de aliados, como associações de moradores de bairros ricos) sair falando absurdos sobre descentralização e mercado imobiliário para proteger privilégios da meia dúzia, ignorando os dados publicados.
A incapacidade da esquerda melhor capitalizada e conectada é impressionante. Eu me recuso a ser vassalo. Não vou ignorar o efeito que sinto para morar em São Paulo, não ganho nada para agradar quem defende bairro-jardim e tecido de baixa densidade do lado das estações mais centrais do Metrô e da CPTM.
Aliás, eu aproveitei a divulgação e critiquei no Instagram. Mesmo o COMMU sendo minúsculo, o post foi ocultado. A minha São Paulo não é e nunca será a sua. A Rede não é representativa.
A RNSP deveria mudar o nome para Rede Nossa Pinheiros ou Rede Nosso Centro Expandido. Cairia melhor. Seria mais honesto.
Talvez me chutem desse grupo estagnado depois dessa. Não estou nem aí. Calaram-se diante da privatização de linhas da CPTM e do Metrô, entre tantos outros absurdos. Isso aqui não passou de um esforço passado de recrutamento de mão de obra não remunerada para enviar cartas inúteis, que são esquecidas tão logo as ONGs capitalizadas publicam seus releases.
Igor Pantoja: Ok, Caio.
Caio César: Claro que é ok, você defende uma cidade que exclui, está numa posição confortável e não tem um pingo de consideração para responder.
E o resto é conivente ou covarde, seja porque quer se preservar, seja porque vive muito bem obrigado nas áreas centrais que moem o resto de nós.
Mas ok. Apresentem os números dizendo que gastamos 4 horas dentro dos transportes públicos e depois apareçam com diagnósticos questionáveis, visando defender a manutenção da estrutura que provoca esse quadro.
Você não tem o menor compromisso quando aparece falando absurdos em torno de descentralização. Alguém precisava lhe dizer isso. Alguém periférico. Você e a RNSP estão tokenizando periferias imensas. Ok.
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