Por Caio César | 03/10/2024 | 7 min.
O cinismo da discussão em torno da suposta preservação ambiental da capital paulista, que estimula a urbanização difusa (chamada de urban sprawl, em inglês), muitas vezes a partir de favelas e loteamentos de origem clandestina ou irregular, produz outro efeito colateral bastante preocupante: o esgarçamento da escala local, negando São Paulo como metrópole e outros 38 municípios como integrantes de sua região metropolitana.
De olho no preocupante fenômeno de associações de moradores, organizações não governamentais e indivíduos supervalorizarem a escala local, no que parece um possível efeito do fenômeno descrito por Mike Davis e citado por David Harvey com relação ao mercado imobiliário estadunidense, ou seja, um comportamento exacerbador do direito de propriedade que resulta num “microfascismo de vizinhança”, passei a olhar mais cuidadosamente para a urbanização difusa sem abandonar um olhar voltado à classe social e, sobretudo, à concentração de renda.
Minha hipótese: o mau uso e ocupação do solo da capital e sua região metropolitana, envolvendo disputas como aquelas ligadas à verticalização e ao adensamento, contribui para expulsar até mesmo as classes médias, além de estimular a autossegregação pelas classes altas. O produto da disputa, que pode ser interpretado tanto como ineficiência regulatória, quanto como baixa capacidade institucional, é um voraz processo de urbanização, que avança sobre áreas vegetadas e terras agrícolas.
Tal processo de urbanização, em muitos dos casos, na realidade, é um processo de suburbanização, com a construção de loteamentos de acesso controlado e condomínios fechados, sem calçadas, com pouco ou nenhum transporte público, baseados em lotes de 500 m² ou maiores, nos quais predomina o uso residencial unifamiliar.
Infelizmente, por ignorância ou por má-fé, em combinação com uma rotulagem esvaziada pelas disputas entre mercado e sociedade — Guerra (2013, p. 183), aponta “vagueza conceitual” e “nuvem ideológica que envolve o conceito de sustentabilidade, impressa nos meios de comunicação de massa e anúncios imobiliários” —, tais subúrbios são cobiçados como bons exemplos, quando, na verdade, são péssimos exemplos baseados na urbanização pós-Segunda Guerra dos Estados Unidos. Como agravante, devido ao padrão de periferização fortemente associado à luta pela sobrevivência das classes mais baixas, é relativamente fácil olhar para bairros populares e, diante da escassez de vias arborizadas, praças e parques, tratar os subúrbios dos mais afortunados como o melhor exemplo do que o mercado pode fazer.
Fazê-lo é uma extraordinária bobagem, defendida por figuras como Carlos Bocuhy e Heitor Marzagão Tomasinni, além de encontrar lastro em organizações como a SOS Mata Atlântica, na figura de indivíduos como Maurício Ramos, que contribuíram para contaminar o Caderno de Propostas do Plano Regional da Subprefeitura de Pinheiros com a noção de um bairro ecológico que, na prática, não existe, porque não há razoabilidade numa ideia de ecologia que depende de segregação socioeconômica extrema às custas da expectativa de vida e oportunidades alheias. A contaminação a que me refiro é endossada e mencionada nos sites do coletivo das Vilas Beatriz, Ida e Jataí e do Observatório Leopoldina.
Vou frisar, caso não tenha ficado claro: fazer pequenas ações locais não transforma subúrbios carrocêntricos de luxo em bairros ecológicos. Ora, você pode encher a caçamba de uma picape a diesel imensa, perigosa e poluidora de vasos de plantas e composteiras, mas ela continua sendo uma picape que vomita material particulado e substâncias venenosas a cada pisada no acelerador. Um bairro de mansões que contribui para encarecer a cidade e estimular longas viagens não é ecológico, nem sustentável, nem ambientalmente amigável. Dizer o contrário também é praticar greenwashing, tal qual incorporadores ligados às “grifes” Alphaville e Tamboré, que alavancaram vendas com vistas permanentes e reservas particulares.
Não quero, contudo, desmerecer práticas que buscam maior sustentabilidade. São interessantes, mas não são suficientes para tornar bairros que se comportam como condomínios de luxo sem muros em tecidos urbanos sustentáveis. É preciso superar a contradição contida na ideia de sustentabilidade face à ausência de densidade demográfica em áreas com boa infraestrutura de transportes públicos, incluindo transporte de massa sobre trilhos. São apenas práticas ecológicas em ambientes insustentáveis, e cuja remediação passa, inevitavelmente, pela necessidade de adensamento construtivo e populacional, o que envolve a temida verticalização, já que transformar mansões em cortiços não é uma opção razoável, além do uso misto, normalmente rejeitado.
Este artigo, porém, não é exatamente sobre os loteamentos que deram origem ao que conhecemos como Alto de Pinheiros, Jardim América, Jardim Europa ou City Lapa, nem sobre a estupidez de coletivos e associações que, em meio a discursos floridos, enchem seus regadores com o sangue e suor da classe média remediada e da classe baixa, enquanto tentam “fugir da pecha de elitista”, apesar da pouca sinceridade. É importante que fique explícito que a presença de grandes bairros ajardinados contribui para elevar preços, criando uma onda de choque que afeta a mancha urbanizada a partir daquele ponto, agravando o quadro de densidades médias ou baixas de outros bairros do Centro Expandido, como Pinheiros. Nossas periferias não são densas e extensas por acaso.
Na verdade, eu precisava criar uma antessala para continuar abordando grandes loteamentos que demandam vultosas extensões de terra e, consequentemente, são implantados fora da capital paulista, em municípios da Macrometrópole Paulista, sobretudo na diagonal que abrange as regiões metropolitanas de São Paulo, Jundiaí, Campinas e Sorocaba. Exemplos de loteamentos já abordados incluem Fazenda Itahyê e Fazenda Itapety.
Perto do que tem sido construído fora da capital, os maus exemplos paulistanos parecem insignificantes, embora estejam longe de sê-lo. Acredito ter colocado elementos suficientes para alertar sobre os perigos de confundir ações microscópicas supostamente ecológicas com características morfológicas perenes de alto impacto. Arborizar não é sinônimo de suburbanizar e horizontalizar. Como sociedade, somos plenamente capazes de constituir tecidos densos e arborizados, reduzindo a destruição ambiental e buscando outras relações de paisagem, com outros modos de vida.
Finalmente, se há uma porção do território paulista que se notabiliza por uma urbanização difusa ligada ao mercado formal, é a oeste, mesclando tecidos na órbita da capital e de Sorocaba: as rodovias ditador Castello Branco e Raposo Tavares formam um eixo de condomínios fechados e loteamentos de acesso controlado, cujo escrutínio é baixíssimo, resultando num escândalo refletido em múltiplos fragmentos mediados por guaritas, rodovias e automóveis.
Espero poder me debruçar a respeito no futuro.
Se você ainda não acompanha o COMMU, curta agora mesmo nossa página no Facebook e siga nossa conta no Instagram. Veja também como ajudar o Coletivo voluntariamente.
comments powered by Disqus