Por Caio César | 22/10/2024 | 9 min.
Para defender um centro comercial e residencial de luxo, a Gazeta de Pinheiros, mais uma vez, retomou a interpretação ingênua do Plano Diretor Estratégico, reforçando uma noção genérica de “trabalhadores” e “interesses imobiliários”. Em tela, mais uma vez, quem especula com restrições artificiais é tratado como herói, enquanto a produção imobiliária é generalizada como uma casca vazia e de utilidade duvidosa.
Infelizmente, o desafio de dialogar sobre especulação é que ela, como tenho tentado explicar, é naturalizada. Ninguém compra imóvel esperando depreciação. Ninguém disputa abertamente dizendo: “quero que o preço caia tanto a ponto de ensejar prejuízo a quem comprou na última década”. Enquanto for assim, não é possível atribuir a especulação como uma característica intrínseca de quem constrói, até porque, pouco tem sido feito para capturar a produção formal.
A ideia de especulação confundida com atividade de construção é perfeita, porque blinda proprietários, e o texto do folhetim de Pinheiros é apenas mais um dos inúmeros exemplos. Ora, proprietário ≠ incorporador: o incorporador pode deter um estoque de terras (landbank, no jargão do meio), é claro, mas o comportamento especulativo do incorporador depende de produção. Para ele, se você derrubar o preço, ótimo. Ele amplia o estoque de terras e depois formula produtos visando lucrar, aliás, para o incorporador, se o preço não for derrubado e ele perceber mercado endereçável, ótimo também, ele vai elevar ainda mais o preço do m² na região e ajudar a expulsar os endinheirados originais. O segundo comportamento descrito parece familiar, não é mesmo?
Supostamente, se o incorporador tiver capacidade, pode até estocar unidades (para tentar aguardar a valorização), mas o que parece regra hoje é: atores suficientemente capitalizados pressionam tanto com liquidez (ou seja, capital para compra dos ativos, na forma das unidades produzidas), que não sobra unidade para o incorporador fazer isso, independente do segmento, com ou sem luxo envolvido.
Um dos poucos casos de especulação naturalizada no qual muita gente se deu mal é o da Momentum. Um caso massivo, dada a envergadura e idade dos loteamentos da empresa. Quando olhamos para o que aconteceu com a Momentum, encontramos pessoas que pagaram 100 mil, 200 mil reais em um terreno vendido por 15 ou 30 mil reais por particulares que também compraram para especular.
Trata-se de um caso simbólico porque a própria loteadora, para além de outros comportamentos que podem ser questionados, chega a readquirir lotes. Ou seja, ela lucra com o processo de devolução. A Momentum vende mais caro do que precifica o mercado de particulares, frustra o especulador, recompra por menos do que já recebeu e do que os particulares vendem (casos de recompra por R$ 4 mil a R$ 10 mil são fáceis de achar no ReclameAqui) e retoma o ciclo de revenda.
A impressão que eu tenho com loteamentos e condomínios mais recentes é que o loteador não superoferta, como fez a Momentum: faseia. Ele pode deter a terra, mas não incorpora. Ele aguarda a valorização e a consolidação primeiro. Daí ele dá continuidade. É por isso que nós vemos os condomínios numerados em Alphaville. Não vieram de uma vez só — leia-se: não desmataram e transformaram bruscamente a paisagem de uma vez só.
E, mesmo em loteamentos clandestinos na periferia, nós vemos esse processo de numerar (ou seja, uma captura de marca conhecida). Exemplos: Jardim Piatã A e B (Mogi das Cruzes), Jardim Aeroporto I, II e II (Mogi das Cruzes), Jardim Vassouras I e II (Francisco Morato) e Residencial Casa Grande I e II (Francisco Morato).
E eis que voltamos à regulação: se tem proprietário se portando como latifundiário, significa que a propriedade indiscriminada de unidades não é economicamente dissuadida, sendo, portanto, viável com anuência dos reguladores. Ora, a sociedade não parece ser capaz de regular conflitos entre diferentes atores (proprietários, proprietários concentradores e latifundiários) preservando quadriláteros “gourmetizados” e sobradões em meio a estilos de vida exclusivos. E mais: quanto mais preservamos o que não deve ser preservado, como são os bairros ajardinados, mais questionável é a preservação de áreas como o quadrilátero Vilas do Sol.
Em matéria de regulação, talvez fosse possível tentar coibir a formação de grandes estoques visando tentar dinamizar o mercado (e reduzir preços), para tanto, é preciso tornar mais arriscada a posse de propriedades subutilizadas em áreas com grande demanda, na qual precisamos maximizar a utilização do espaço disponível (o que exige verticalização). Não vemos a discussão caminhar nessa direção, basta observar o teor de mais uma peça risível do folhetim do oeste paulistano.
Quando comecei a discutir a criação do COMMU, sabia muito pouco sobre o mercado imobiliário, mas fui aprendendo ao longo de uma década porque percebi que não daria para ficar só numa discussão expansionista (independente de envolver infraestrutura existente ou a ser construída) em torno do transporte sobre trilhos.
Infelizmente, a especulação não é único problema. A hipocrisia ambiental ou ambientalismo de butique, como gosto de dizer, estabelece discursos que especulam com atributos ambientais. Os discursos capturam os atributos ambientais, isentam os atuais proprietários de culpa e despejam uma série de problemas urbanos, sem a devida discussão, em qualquer figura indesejável, como incorporadoras e moradores de novos empreendimentos.
Artigo adaptado a partir de uma resposta ao Pró-Pinheiros no Instagram. Considerando que estamos em um ambiente urbano metropolitano, qualquer movimentação tem causa/efeito em toda a sua estrutura. O Pró-Pinheiros, assim como a comunidade do Pacaembu, é uma coalizão de agentes com seus próprios interesses, e o cerne dos interesses dos agentes que formam o Pró-Pinheiros é evitar o adensamento da região. O Pacaembu, assim como Pinheiros, possui poder econômico, tempo (que se configura como organização) e influência política.
No texto do pasquim, foram citados problemas como ilhas de calor, perda da permeabilidade e arborização. Por acaso, o quadrilátero batizado de Vilas do Sol é um péssimo exemplo, então. O quadrilátero não passa de uma série de imóveis de baixo gabarito (vários deles sem áreas permeáveis) rodeados de asfalto. A presença de meia dúzia de árvores não torna nenhum morador uma figura perfeita e isenta de causar impacto. Sua presença reduz artificialmente a capacidade de colocarmos mais pessoas (inclusive, de mesmo poder aquisitivo) para morar na vizinhança da Estação Fradique Coutinho.
Nada além do ecofascismo de sempre. O tombamento citado pelo pasquim é apenas mais um dos exemplos de abuso de poder econômico que as populações endinheiradas do Centro Expandido praticam contra o restante da cidade, da região metropolitana, da macrometrópole e do estado. Para preservar um núcleo que não passa de um lifestyle center às margens das mansões dos Jardins, todos devemos pagar mais caro e sermos reféns de um ambientalismo que não tem capacidade de olhar para problemas estruturais, simplesmente porque fazê-lo esvaziaria ainda mais a proteção de áreas histórica e culturalmente irrelevantes, como as Vilas do Sol.
O cinismo da discussão em torno da suposta preservação ambiental da capital paulista, que estimula a urbanização difusa (chamada de urban sprawl, em inglês), muitas vezes a partir de favelas e loteamentos de origem clandestina ou irregular, produz outro efeito colateral bastante preocupante: o esgarçamento da escala local, negando São Paulo como metrópole e outros 38 municípios como integrantes de sua região metropolitana. De olho no preocupante fenômeno de associações de moradores, organizações não governamentais e indivíduos supervalorizarem a escala local, no que parece um possível efeito do fenômeno descrito por Mike Davis e citado por David Harvey com relação ao mercado imobiliário estadunidense, ou seja, um comportamento exacerbador do direito de propriedade que resulta num “microfascismo de vizinhança”, passei a olhar mais cuidadosamente para a urbanização difusa sem abandonar um olhar voltado à classe social e, sobretudo, à concentração de renda.
Não que preservar as Vilas do Sol, que já deixaram de ser uma zona capaz de receber edifícios compatíveis com a infraestrutura que contribuintes de todo o estado de São Paulo ajudaram a custear, seja exatamente um problema. Seria algo razoável, desde que implicasse na alteração do zoneamento de todos os bairros ajardinados da região, como Alto de Pinheiros, Jardim Europa e Jardim América. Cabe ainda salientar que, mesmo sem tombamento, o quadrilátero foi rezoneado como Zona Predominantemente Residencial.
A preservação das Vilas do Sol significa que qualquer sobrado com uma bodega de luxo é um elemento identitário e cultural inabalável, fazendo virtualmente com que boa parte da capital se torne passível de preservação. Mais uma vez, o recurso do tombamento está sendo utilizado por movimentos reacionários como uma estratégia de burla ao ordenamento territorial, uma vez que captura o marco regulatório para esgarçar a escala local e o direito de propriedade de uma minoria às custas de toda a cidade.
Lamentavelmente, o poder econômico ergue muros invisíveis a partir da captura regulatória, enquanto a esquerda aburguesada aplaude, impulsionando os violentos golpes que historicamente formatam periferias empobrecidas e cinzentas, nas quais a luta pela sobrevivência imediata dificulta a preservação ambiental, ainda que na forma de bairros arborizados pouco ou nada resilientes, como alguns redutos de milionários hipócritas que não serão massageados pelo Coletivo. É preservando Vilas do Sol aqui e acolá que normalizamos o desmatamento das franjas e ameaçamos nossas represas. Sol para um punhado de privilegiados, trevas para a maioria de nós.
Em tempo, parabéns ao pasquim pela fotografia utilizada na abertura do texto. O utilitário esportivo de luxo (fabricado pela Mitsubishi), se encontrava estacionado sobre o passeio intermitente, que também apresentava problemas de continuidade devido à presença de vasos de plantas. Definitivamente o exemplo que precisamos para a cidade. Nada mais do que outro microcosmos suburbano fora de lugar. Um miolo de casas que deveria estar a 50 km da cidade preservado por um comércio de que poderia existir em qualquer térreo de edifício. Tudo isso a poucos metros da Linha 4-Amarela (Luz-Vila Sônia).
Francamente, seria mais honesto tombar o Centro Comercial Alphaville. A vergonha alheia seria bem menor!
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