Direito de criticar a preservação das Vilas do Sol deve ser respeitado

Por Caio César | 22/10/2024 | 9 min.

Legenda: Fotografia dos limites das Vilas do Sol, na rua Mateus Grou, Pinheiros. Morfologia não condiz com infraestrutura instalada. À direita, um supermercado, comparável à nada popular rede St. Marche, batizado com o sugestivo nome de Quitanda
Preservação de 52 casas vizinhas a extenso bairro de mansões é só mais uma página triste do desvirtuamento do instrumento do tombamento e da tokenização da classe trabalhadora, que se vê transformada em munição por um discurso ambientalista hipócrita. As Vilas do Sol formam um polígono composto pelas ruas dos Pinheiros, Mateus Grou, Artur de Azevedo e Doutor Virgílio de Carvalho Pinto

Para defender um centro comercial e residencial de luxo, a Gazeta de Pinheiros, mais uma vez, retomou a interpretação ingênua do Plano Diretor Estratégico, reforçando uma noção genérica de “trabalhadores” e “interesses imobiliários”. Em tela, mais uma vez, quem especula com restrições artificiais é tratado como herói, enquanto a produção imobiliária é generalizada como uma casca vazia e de utilidade duvidosa.

Legenda: Galeria da viagem ao quadrilátero em abril de 2024. Acessar o local no horário de pico vespertino a partir da Zona Leste é didático: superlotação para os mais pobres que voltam para seus lares, ociosidade no contra-fluxo para os mais ricos. O quadrilátero poderia ocupar tranquilamente o térreo e alguns andares de um ou mais edifícios de uso misto, abrindo espaço para muito mais gente desfrutar do local, mas nossa sociedade continua escolhendo os caminhos mais difíceis para preservar privilégios e irracionalidades. Clicar numa fotografia a abre na galeria com controles de navegação próprios

Infelizmente, o desafio de dialogar sobre especulação é que ela, como tenho tentado explicar, é naturalizada. Ninguém compra imóvel esperando depreciação. Ninguém disputa abertamente dizendo: “quero que o preço caia tanto a ponto de ensejar prejuízo a quem comprou na última década”. Enquanto for assim, não é possível atribuir a especulação como uma característica intrínseca de quem constrói, até porque, pouco tem sido feito para capturar a produção formal.

A ideia de especulação confundida com atividade de construção é perfeita, porque blinda proprietários, e o texto do folhetim de Pinheiros é apenas mais um dos inúmeros exemplos. Ora, proprietário ≠ incorporador: o incorporador pode deter um estoque de terras (landbank, no jargão do meio), é claro, mas o comportamento especulativo do incorporador depende de produção. Para ele, se você derrubar o preço, ótimo. Ele amplia o estoque de terras e depois formula produtos visando lucrar, aliás, para o incorporador, se o preço não for derrubado e ele perceber mercado endereçável, ótimo também, ele vai elevar ainda mais o preço do m² na região e ajudar a expulsar os endinheirados originais. O segundo comportamento descrito parece familiar, não é mesmo?

Supostamente, se o incorporador tiver capacidade, pode até estocar unidades (para tentar aguardar a valorização), mas o que parece regra hoje é: atores suficientemente capitalizados pressionam tanto com liquidez (ou seja, capital para compra dos ativos, na forma das unidades produzidas), que não sobra unidade para o incorporador fazer isso, independente do segmento, com ou sem luxo envolvido.

Um dos poucos casos de especulação naturalizada no qual muita gente se deu mal é o da Momentum. Um caso massivo, dada a envergadura e idade dos loteamentos da empresa. Quando olhamos para o que aconteceu com a Momentum, encontramos pessoas que pagaram 100 mil, 200 mil reais em um terreno vendido por 15 ou 30 mil reais por particulares que também compraram para especular.

Trata-se de um caso simbólico porque a própria loteadora, para além de outros comportamentos que podem ser questionados, chega a readquirir lotes. Ou seja, ela lucra com o processo de devolução. A Momentum vende mais caro do que precifica o mercado de particulares, frustra o especulador, recompra por menos do que já recebeu e do que os particulares vendem (casos de recompra por R$ 4 mil a R$ 10 mil são fáceis de achar no ReclameAqui) e retoma o ciclo de revenda.

A impressão que eu tenho com loteamentos e condomínios mais recentes é que o loteador não superoferta, como fez a Momentum: faseia. Ele pode deter a terra, mas não incorpora. Ele aguarda a valorização e a consolidação primeiro. Daí ele dá continuidade. É por isso que nós vemos os condomínios numerados em Alphaville. Não vieram de uma vez só — leia-se: não desmataram e transformaram bruscamente a paisagem de uma vez só.

E, mesmo em loteamentos clandestinos na periferia, nós vemos esse processo de numerar (ou seja, uma captura de marca conhecida). Exemplos: Jardim Piatã A e B (Mogi das Cruzes), Jardim Aeroporto I, II e II (Mogi das Cruzes), Jardim Vassouras I e II (Francisco Morato) e Residencial Casa Grande I e II (Francisco Morato).

E eis que voltamos à regulação: se tem proprietário se portando como latifundiário, significa que a propriedade indiscriminada de unidades não é economicamente dissuadida, sendo, portanto, viável com anuência dos reguladores. Ora, a sociedade não parece ser capaz de regular conflitos entre diferentes atores (proprietários, proprietários concentradores e latifundiários) preservando quadriláteros “gourmetizados” e sobradões em meio a estilos de vida exclusivos. E mais: quanto mais preservamos o que não deve ser preservado, como são os bairros ajardinados, mais questionável é a preservação de áreas como o quadrilátero Vilas do Sol.

Legenda: Mapas de localização do supracitado quadrilátero: “ilha de lifestyle” num “oceano” de bairros ajardinados, que contribuem para impedir o aumento da população residente em áreas centrais e com boa oferta de infraestrutura de transporte. Tipos de zonas apresentadas: ZEU, Zona Eixo de Estruturação da Transformação Urbana; ZPR, Zona Predominantemente Residencial; e ZER-1, Zona Exclusivamente Residencial com predominância de lotes de médio porte. Clique no mapa para abri-lo e ampliá-lo

Em matéria de regulação, talvez fosse possível tentar coibir a formação de grandes estoques visando tentar dinamizar o mercado (e reduzir preços), para tanto, é preciso tornar mais arriscada a posse de propriedades subutilizadas em áreas com grande demanda, na qual precisamos maximizar a utilização do espaço disponível (o que exige verticalização). Não vemos a discussão caminhar nessa direção, basta observar o teor de mais uma peça risível do folhetim do oeste paulistano.

Quando comecei a discutir a criação do COMMU, sabia muito pouco sobre o mercado imobiliário, mas fui aprendendo ao longo de uma década porque percebi que não daria para ficar só numa discussão expansionista (independente de envolver infraestrutura existente ou a ser construída) em torno do transporte sobre trilhos.

Infelizmente, a especulação não é único problema. A hipocrisia ambiental ou ambientalismo de butique, como gosto de dizer, estabelece discursos que especulam com atributos ambientais. Os discursos capturam os atributos ambientais, isentam os atuais proprietários de culpa e despejam uma série de problemas urbanos, sem a devida discussão, em qualquer figura indesejável, como incorporadoras e moradores de novos empreendimentos.

Artigo adaptado a partir de uma resposta ao Pró-Pinheiros no Instagram. Considerando que estamos em um ambiente urbano metropolitano, qualquer movimentação tem causa/efeito em toda a sua estrutura. O Pró-Pinheiros, assim como a comunidade do Pacaembu, é uma coalizão de agentes com seus próprios interesses, e o cerne dos interesses dos agentes que formam o Pró-Pinheiros é evitar o adensamento da região. O Pacaembu, assim como Pinheiros, possui poder econômico, tempo (que se configura como organização) e influência política.

No texto do pasquim, foram citados problemas como ilhas de calor, perda da permeabilidade e arborização. Por acaso, o quadrilátero batizado de Vilas do Sol é um péssimo exemplo, então. O quadrilátero não passa de uma série de imóveis de baixo gabarito (vários deles sem áreas permeáveis) rodeados de asfalto. A presença de meia dúzia de árvores não torna nenhum morador uma figura perfeita e isenta de causar impacto. Sua presença reduz artificialmente a capacidade de colocarmos mais pessoas (inclusive, de mesmo poder aquisitivo) para morar na vizinhança da Estação Fradique Coutinho.

Nada além do ecofascismo de sempre. O tombamento citado pelo pasquim é apenas mais um dos exemplos de abuso de poder econômico que as populações endinheiradas do Centro Expandido praticam contra o restante da cidade, da região metropolitana, da macrometrópole e do estado. Para preservar um núcleo que não passa de um lifestyle center às margens das mansões dos Jardins, todos devemos pagar mais caro e sermos reféns de um ambientalismo que não tem capacidade de olhar para problemas estruturais, simplesmente porque fazê-lo esvaziaria ainda mais a proteção de áreas histórica e culturalmente irrelevantes, como as Vilas do Sol.

O cinismo da discussão em torno da suposta preservação ambiental da capital paulista, que estimula a urbanização difusa (chamada de urban sprawl, em inglês), muitas vezes a partir de favelas e loteamentos de origem clandestina ou irregular, produz outro efeito colateral bastante preocupante: o esgarçamento da escala local, negando São Paulo como metrópole e outros 38 municípios como integrantes de sua região metropolitana. De olho no preocupante fenômeno de associações de moradores, organizações não governamentais e indivíduos supervalorizarem a escala local, no que parece um possível efeito do fenômeno descrito por Mike Davis e citado por David Harvey com relação ao mercado imobiliário estadunidense, ou seja, um comportamento exacerbador do direito de propriedade que resulta num “microfascismo de vizinhança”, passei a olhar mais cuidadosamente para a urbanização difusa sem abandonar um olhar voltado à classe social e, sobretudo, à concentração de renda.

Não que preservar as Vilas do Sol, que já deixaram de ser uma zona capaz de receber edifícios compatíveis com a infraestrutura que contribuintes de todo o estado de São Paulo ajudaram a custear, seja exatamente um problema. Seria algo razoável, desde que implicasse na alteração do zoneamento de todos os bairros ajardinados da região, como Alto de Pinheiros, Jardim Europa e Jardim América. Cabe ainda salientar que, mesmo sem tombamento, o quadrilátero foi rezoneado como Zona Predominantemente Residencial.

A preservação das Vilas do Sol significa que qualquer sobrado com uma bodega de luxo é um elemento identitário e cultural inabalável, fazendo virtualmente com que boa parte da capital se torne passível de preservação. Mais uma vez, o recurso do tombamento está sendo utilizado por movimentos reacionários como uma estratégia de burla ao ordenamento territorial, uma vez que captura o marco regulatório para esgarçar a escala local e o direito de propriedade de uma minoria às custas de toda a cidade.

Lamentavelmente, o poder econômico ergue muros invisíveis a partir da captura regulatória, enquanto a esquerda aburguesada aplaude, impulsionando os violentos golpes que historicamente formatam periferias empobrecidas e cinzentas, nas quais a luta pela sobrevivência imediata dificulta a preservação ambiental, ainda que na forma de bairros arborizados pouco ou nada resilientes, como alguns redutos de milionários hipócritas que não serão massageados pelo Coletivo. É preservando Vilas do Sol aqui e acolá que normalizamos o desmatamento das franjas e ameaçamos nossas represas. Sol para um punhado de privilegiados, trevas para a maioria de nós.

Em tempo, parabéns ao pasquim pela fotografia utilizada na abertura do texto. O utilitário esportivo de luxo (fabricado pela Mitsubishi), se encontrava estacionado sobre o passeio intermitente, que também apresentava problemas de continuidade devido à presença de vasos de plantas. Definitivamente o exemplo que precisamos para a cidade. Nada mais do que outro microcosmos suburbano fora de lugar. Um miolo de casas que deveria estar a 50 km da cidade preservado por um comércio de que poderia existir em qualquer térreo de edifício. Tudo isso a poucos metros da Linha 4-Amarela (Luz-Vila Sônia).

Francamente, seria mais honesto tombar o Centro Comercial Alphaville. A vergonha alheia seria bem menor!




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