Por Caio César | 31/10/2024 | 13 min.
Recentemente, o recém-eleito vereador Nabil Bonduki (PT) — resultado para o qual contribuí, pois era um dos menos piores, e preciso dizer com todas as letras que assim o considerei — deu continuidade à sua esteira de vídeos curtos no Instagram.
Na mira da metralhadora de platitudes empunhada pelo professor da USP (Universidade de São Paulo), estava a região na qual nasci e vivo: a Zona Leste paulistana. Como eleitor, fui alvejado múltiplas vezes, tanto por Bonduki e sua postura irresponsável, quanto pela claque que ajudou a alimentar, sem grande preocupação com esclarecimentos ou um debate mais cuidadoso.
Os disparos mais recentes acertaram um alvo já bastante desgastado: o edifício Figueira Altos do Tatuapé, construído pela Porte e inaugurado em 2021, com pouco mais de 50 andares. Um colosso a cerca de 2 km das estações Carrão e Tatuapé, como mostrado nos mapas a seguir. A futura Anália Franco (em obras) também ficará a cerca de 2 km do edifício.
Navegando por um labirinto repleto de ambiguidades, o vereador no qual votei utilizou a munição de sempre, baseada na combinação de duas ideias: (i) “miolo de bairro”, conceito arbitrário, ainda que revestido por algum grau de tecnicismo; e (ii) DOTS (desenvolvimento orientado ao transporte sustentável), um conjunto de boas práticas para estruturar tecidos urbanos mais densos (e, consequentemente, verticais) ao redor da infraestrutura de transporte público, tendo como ponto fraco a subjetividade (ou perversidade) quanto à definição das distâncias aceitáveis.
Quando discuto sobre a baixa abrangência das zonas permissíveis à verticalização, que compreendem raios de menos de 600 metros, nos melhores casos (estações do sistema metroferroviário), não acho que o parâmetro que determina a proximidade do transporte foi chutado. E é aí que reside o maior problema. Legenda: As extremamente limitadas áreas de influência da infraestrutura de transporte público, recuperadas no âmbito da tentativa de revisão do Plano Diretor Estratégico pela atual gestão, por meio de um diagnóstico inicial Para contextualizar: neste artigo, falo, sobretudo, do ordenamento aprovado na gestão de Fernando Haddad (PT; 2013-2017), a partir de 2014, composto pelo PDE (Plano Diretor Estratégico, informalmente chamado de “plano” ou “plano diretor”) e pela LPUOS (Lei de Uso, Ocupação e Parcelamento do Solo, informalmente chamada de “zoneamento”).
Em outras palavras, Nabil e sua equipe, nada ingênuos, construíram um vídeo intencionalmente polemizador, no qual deixaram subentendido que uma das áreas mais dinâmicas do Tatuapé só deveria possuir casas térreas e sobrados, utilizando o Figueira como retrato da “degradação urbana” e fazendo parecer que a região é pouquíssimo verticalizada. Não é!
O tom adotado, exagerado e impróprio, parece excelente para atrair cliques e comentários ácidos, vindos de gente que, às vésperas de um segundo turno, sentenciou que a Zona Leste abriga uma cidade de gente cafona, de mau gosto, e pior, cuja economia local está subordinada à presença do crime organizado. Tudo isso sem que nenhuma figura supostamente progressista (incluindo o docente), abrisse a boca para interromper a tempestade de comentários preconceituosos.
Mais uma vez, ficamos — e tomo a liberdade de utilizar o plural, pois a Zona Leste inteira foi atacada pela claque — em meio ao fogo cruzado de uma rinha de ricos. O Tatuapé foi, como tem sido há anos, tokenizado para que a cortina de fumaça em torno do Centro Expandido continue bastante espessa.
Eufemismos No bojo dos meus deslocamentos entre São Paulo e São Bernardo do Campo, comentei com outros membros deste Coletivo sobre como é muito fácil ser transformado numa espécie de caricatura ao tentar discutir diferentes porções da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo). Nada contra Paris, mas a São Bernardo do Campo chego de ônibus Há alguns dias, voltei a me deslocar diariamente para São Bernardo do Campo[1] e, ao longo de uma semana, suspeito que já acumulei material suficiente para fomentar discussões por meses, escrevendo artigos, publicando no Instagram, dialogando internamente com outros membros no Telegram, etc.
Coincidentemente (ou não), o Figueira reapareceu dias depois na cidade CON.VIDA, um perfil no Instagram que propõe compartilhar “ideias em busca de cidades mais possíveis”. A CON.VIDA assim legendou uma fotografia sem mencionar o edifício: “Arquitetura aterrorizante: edifícios que desrespeitam conceito, legislação, história ou entorno, aparecendo de forma assustadora na paisagem e prejudicando a vizinhança”. Bobagem! Mais uma vez, a repetição da fórmula.
- Qual conceito teria sido desrespeitado? Não diz, além de erguer o primeiro escudo de subjetividade;
- Qual legislação teria sido desrespeitada? Não só não explica, como omite que o Plano Diretor da época foi sancionado por Marta Suplicy (PT), que escamoteou a postura golpista num retorno desavergonhado ao Partido dos Trabalhadores, quando compôs a chapa com Guilherme Boulos (PSOL) para disputar a prefeitura da capital paulista;
- Qual história desrespeitada? Também não detalha, contribuindo para reforçar uma ideia de imutabilidade numa região estrategicamente localizada, ou seja, esgarçou a escala da quadra para ignorar que vizinhanças impactam umas nas outras além do que podemos enxergar com nossos olhos;
- Qual entorno teria sido desrespeitado? Mais uma vez, subentende-se que o entorno sofreu desrespeito porque a volumetria (ou seja, como a construção se projeta) difere do tecido de sobrados, que passa a ser tratado e normalizado como modelo, quando é absolutamente passível de questionamento, seja pela transformação que induziu no passado, seja pelo impacto que causa ao ser preservado.
A ideia de “dano à vizinhança”, presente sem a devida elaboração, não pode ser engolida acriticamente, muito menos o esvaziamento de rótulos drásticos, como aqueles que remetem à ideia de terror. Não há nada aterrorizante no Figueira, pelo contrário, aterrorizante era a construção anterior, um edifício com feições fabris que estava ocioso há anos, sem que qualquer alma caridosa do Centro Expandido lutasse pelo cumprimento da função social daquela propriedade! Aterrorizante é mesmo a infantilidade de quem acredita que criar escassez artificial em áreas de elevada demanda não dificulta a oferta de imóveis mais acessíveis, nem estimula mais desmatamento com novos loteamentos (independente de serem ou não regulares).
Obviamente, o Figueira está situado de maneira desproporcional naquela paisagem, assim como outros edifícios já estiveram no passado, sendo aceitos sem grita atualmente. E assim o Figueira permanecerá, pois o ordenamento atual, desenvolvido na gestão Fernando Haddad (PT) e revisado porcamente na gestão Ricardo Nunes (MDB) considera que aquele tecido, embora admita uso misto, precisa ficar restrito a edifícios baixos. Problema resolvido?
Boa sorte para quem acredita que é viável construir novos edifícios de 8 andares em alguns dos m² mais caros da região metropolitana. E, para quem acredita, como as unidades ofereceriam acessibilidade maior sem cair nos espantalhos mais comuns, envolvendo quitinetes e apartamentos com alguma metragem arbitrariamente tratada como tóxica?
É didático o artigo recente a respeito do loteamento da Arqos na periferia mais extrema da mancha urbana de Santana de Parnaíba. Capturando a ideia de “cidade de 15 minutos”, uma empresa pressionará ainda mais as franjas de Alphaville-Tamboré. Podemos lutar para que a cidade tenha mais m² de área verde por habitante, buscando maior adensamento e verticalização, ou podemos privatizar e destruir matas para serem transformadas no quintal de alguns milionários em edifícios de quatro andares.
Depois do greenwashing, vem aí o timewashing? Na primeira metade de setembro, eu comentava com outros integrantes deste Coletivo sobre o que denominei “mais uma suburbada no oeste”. Após abordar o empreendimento Fazenda Itahyê, chegou a vez de falar do DISTRITQ (lê-se “distrito”), da incorporadora Arqos. Mais um empreendimento que recicla a ideia de centros de apoio da Alphaville Urbanismo, porém, sem arrasar o meio físico (terraplanando e criando urbanizações suscetíveis a alagamentos, para ser gentil na crítica).
Lamentavelmente, as discussões predominantes não estão à altura da complexidade do tema. Tanto Nabil, quanto CON.VIDA falharam. Em nenhum momento a cidade idealizada por eles fica menos abstrata e crível, ao passo que temas complexos são triturados e enlatados para atração de likes.
- Por que faz sentido uma noção extremamente rígida de “miolo de bairro”?
- Por que edifícios de baixo gabarito são tratados como um modelo que precisa ser preservado, mesmo quando não é difícil de encontrar casas com muros e portões altos, além de calçadas ruins?
- Por que podemos condicionar a noção de perto e longe do sistema de trilhos sem considerar outros elementos, incluindo a tolerância a 100 ou 200 metros?
- Por que deslegitimamos uma série de instrumentos formais utilizando adjetivos como “desenfreada” e “sem planejamento” quando, na verdade, não são aplicáveis?
- Considerando o discurso sobre descentralização e geração de empregos, qual é o resultado esperado no tocante à riqueza acumulada pelo tecido empresarial? Em outras palavras, se houver geração de emprego e fixação de capital na região, como esperamos que a paisagem responda?
- Quais seriam as alternativas para o segmento de atuação da Porte?
- Como restringir torres de baixa densidade desestimula condomínios horizontais que, não só são de baixa densidade, como ocupam muito mais espaço, consequentemente, desmatando mais para abrigar menos famílias?
- Como melhorar a acessibilidade habitacional numa fração do território que apresenta um vibrante tecido de bares e restaurantes, e que só recentemente passou a receber edifícios capazes de abrigar grandes empresas?
- Faz sentido ignorar a oferta de transporte dos ônibus? A noção de capacidade dialoga com dimensões tangíveis e verificáveis de demanda, ou é mero instrumento de retórica?
Finalmente, de todas as contradições mencionadas até agora, se há uma que me incomoda mais, é aquela que envolve o transporte de massa sobre trilhos. Existem dois argumentos contraditórios especialmente irritantes no vídeo do ilustre vereador: o primeiro é a questão da densidade habitacional, o segundo é a questão do impacto da mesma densidade face à logística de transporte de pessoas.
Assumindo que os indivíduos capazes de adquirir uma unidade no Figueira optem pelo uso do sistema de trilhos, seria preciso percorrer uma distância de 1,6 km até a Estação Tatuapé, a mais próxima e melhor servida, uma vez que possui três linhas obedecendo parada constantemente, além de dois terminais de ônibus e pontos voltados para a Radial Leste. Sem dúvidas, uma oferta nada desprezível, mas que não foi cuidadosamente considerada.
No vídeo que motivou este artigo, a tolerância para cravar se um edifício está perto ou longe de uma estação foi de 1,5 km. 100 metros fazem tanta diferença assim? A caminhada envolvendo eixos comerciais como as ruas Tuiuti e Coelho Lisboa exige cerca de 25 minutos. É trivial andar muito mais do que isso para fazer compras não só no Tatuapé, mas outros bairros da borda da Zona Leste, como Mooca e Vila Formosa.
Andar mais de 1,5 km para consumir ou acessar algum equipamento implica em qual escolha modal, caso não exista uma estação capaz de minimizar parte expressiva do deslocamento? Ônibus não conta? Bicicleta não conta? Caminhada não conta? Acima de 1,5 km São Paulo se transforma na “cidade dos carros”? E mais: o edifício possui baixa densidade, logo, faria sentido que estivesse localizado nos poucos lugares do Tatuapé que ainda podem receber prédios mais altos, como o entorno das estações Carrão e Tatuapé?
Percebem que há uma contradição intransponível? Se a Porte construísse uma torre similar em algum ponto da rua Platina, na qual busca consolidar uma centralidade linear capaz de rivalizar com aquelas presentes no Itaim Bibi, seria provavelmente criticada por “desperdiçar” terra para abrigar algumas poucas famílias de alto poder aquisitivo, mas, ao mesmo tempo, se a Porte construísse uma torre similar a uma distância superior a 1,5 km de uma estação, seria crucificada por causar “impacto demais” em um lugar “longe” do “transporte público que interessa” (vulgo, aquele preferido pelas classes endinheiradas, sobre trilhos, de preferência, com linhas bem curtas e com baixa penetração nas periferias mais vulneráveis).
O que sobra, então? Construir na Grande São Paulo, aproveitando a baixíssima mobilização e a crítica virtualmente inexistente, de preferência, desmatando áreas comparáveis a parques, fragmentando o espaço com condomínios e suas enfadonhas portarias, a distâncias que facilmente superam 10 km da estação mais próxima? Para efeito de comparação, o Residencial Tamboré 11, com lotes que variam de 420 a 850 m², localizado sutilmente ao sul dos terrenos que a Arqos explorará, fica a pouco mais de 8 km das estações Carapicuíba e Antônio João da Linha 8-Diamante, duas das mais próximas. Da Carapicuíba até Barra Funda, terminal da mesma Linha 3-Vermelha que passa pelas estações Carrão e Tatuapé, é preciso percorrer 18,75 km pela Linha 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi) — para efeito de comparação, a Linha 3-Vermelha inteira tem cerca de 22 km, desde a Estação Corinthians·Itaquera.
Prólogo Em 9 de agosto, nosso membro Wesley Café Calazans comentou sobre como o discurso radicalmente contra prédios parece ser alimentado pela ausência de boa arquitetura em muito do que é produzido na capital paulista. A partir daí, verborrágico como sou, teci uma série de comentários, boa parte dos quais foram utilizados para construir este artigo. Escassez e hipocrisia Estou certo de que a má arquitetura contribui para o rechaço à verticalização, entretanto, suspeito ser mais fácil se aproveitar do problema, afinal, ele é um excelente pretexto para querer mandar “os amiguinhos” para longe, afinal, exigir boa arquitetura ainda pressupõe demolir casas.
E, em meio ao tiroteio, nada é dito sobre a omissão histórica do governo municipal, que pouco ou nada faz para desincentivar a utilização do automóvel. Priorizar pessoas e ônibus na rua Itapura? Negativo. Adicionar travessias elevadas na rua Emília Marengo? Nada. Melhorar o atendimento de média capacidade entre as partes alta e baixa do Tatuapé, considerando a atração de viagens gerada pelo Shopping Anália Franco? Nem pensar. Ampliação da malha cicloviária? A conta-gotas, sempre asfixiada pela ignorância. Implantar bons sistemas de ônibus expressos aproveitando avenidas como Vereador Abel Ferreira, Regente Feijó e Salim Farah Maluf? Jamais.
O problema é o Figueira ou nossa omissão com a péssima urbanidade paulistana? Não temos projeto de cidade. O campo progressista, eleição a eleição, não é ousado e se recusa a sonhar. A campanha já acabou. A derrota já nos atingiu. O tom deveria mudar, pelo bem de quem não tem cargo na USP, não passou a vida inteira morando no Centro Expandido e precisa se agarrar a outras coisas para não enlouquecer tentando sobreviver.
Nabil, com todo respeito, mas você precisa conversar com quem enxerga a cidade traçando paralelos para além do próprio umbigo e de meia dúzia de esquinas, principalmente sendo uma das referências em habitação no Brasil e tendo presenciado, com os sapatos sujos de barro, o surgimento de núcleos populares — estes, sim, aterrorizantes devido à precariedade sem alternativas, condenando parte da população a uma vida de longos deslocamentos e convivência com patologias construtivas e urbanísticas de difícil remediação. Recado este que se aplica a muitas outras pessoas, incluindo gente que se considera aliada em outras lutas das quais participamos, pois é urgente que encontremos um caminho para compactar o tecido urbano e democratizar o acesso à habitação na mancha existente. Não há espaço para mais platitudes ou extração de curtidas na base da hipocrisia.
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