Exaltado, Ricardo Nunes defende complexo viário de concepção anacrônica

Por Caio César | 14/11/2024 | 6 min.

Legenda: Local aproximado da abertura do túnel na rua Sena Madureira, vista sentido Domingos de Morais. Foto: Sofia Galassi
Entre um tapa e outro em documentos, prefeito considera obra de utilidade duvidosa como sinônimo de progresso, oferecendo respostas vagas às perguntas que continuam a assombrá-lo

Com documentos em mãos, o mandatário do Executivo paulistano, reeleito em chapa encabeçada pelo fisiológico MDB (Movimento Democrático Brasileiro), insiste que inaugurará complexo viário que contará com dois túneis na região da Avenida Sena Madureira, na Vila Mariana.


Legenda: Vídeo publicado na conta oficial de Ricardo Nunes na rede social Instagram

Para ele, o prefeito Ricardo Nunes, a oposição se resume a uma narrativa em torno da criação de impactos ambientais — há quatro dias, reduziu os protestos a um “teatro”. Nunes insiste que as 172 árvores que serão removidas serão compensadas por 266 novos indivíduos, sem informar se serão mudas ou de porte de adulto, ou a localização precisa de cada um deles, além disso, classifica as comunidades existentes como favelas cujas centenas de habitações carecem de condições adequadas de habitabilidade, insinuando falta de razoabilidade na luta por permanência, sem, no entanto, garantir que oferta das unidades habitacionais nas imediações e preservação dos laços socioeconômicos estabelecidos há décadas.

À medida que desferiu tapas em calhamaços com a liminar e o licenciamento ambiental impressos, Nunes continuou a defender o indefensável: um complexo viário agressivo e de baixíssima capacidade, que insiste em rasgar tecidos com elementos rodoviários baseados em premissas antiquadas de décadas atrás.

A montagem exibida pelo prefeito, sobrepondo legendas a imagens aéreas, ilustra um grande eixo viário que parte da margem ajardinada da Marginal Pinheiros (primeiro elemento problemático, pois o tecido é tóxico, possuindo baixa densidade em porções estratégicas da mancha urbana), com os túneis Jânio-Quadros e Sebastião Camargo, avançando pelas avenidas Juscelino Kubischek e pelos túneis Tribunal de Justiça e Ayrton Senna (este último grafado incorretamente como “Ayrton Sena”), até atingir o Complexo Viário Jorge João Saad, quando desemboca no que seria uma das pontas do Complexo Viário Sena Madureira, o qual visa estabelecer outra conexão entre a Rua Domingos de Moraes e Avenida Doutor Ricardo Jafet, embora termine a 1 km antes da Ricardo Jafet, na Rua Embuaçu.

Não satisfeito em desferir ataques, Nunes prometeu recorrer à liminar e rotulou a oposição como “turma do atraso”, fazendo outra insinuação, ao dizer que São Paulo não seria a cidade para quem rejeita os túneis. Nada mais falso e estúpido do que tentar associar uma obra tão questionável à ideia de desenvolvimento. Afirmar que “são ações como essa que diminuem o trânsito” e “que melhora a mobilidade” é seguir na contramão da história, negando práticas urbanísticas que estão transformando cidades ao redor do mundo, desde metrópoles globais a cidades de menor importância.

Enquanto Paris e outras cidades europeias trabalham para restringir automóveis, como os desajeitados utilitários esportivos, Nunes insiste numa visão antiquada de alargamento de vias e construção de pontes e viadutos, banalizando infraestruturas de alto impacto. Não por acaso, o Aquático, transporte hidroviário permeado por polêmicas, foi citado como exemplo, quando, na verdade, é mais um elemento de pressão numa região que deveria ser objeto de uma dupla política ambiental e habitacional, uma vez que não deveria ter a ocupação estimulada.

Sem entregas relevantes de unidades habitacionais capazes de abrigar centenas de milhares de famílias em porções centrais da cidade, Nunes reforça a aplicação de receituários preguiçosos que reforçam injustiças e insustentabilidades.

É oportuno salientar que a recomendação do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) envolveu nada mais do que nove páginas de considerações indicando a paralisação das obras. Antes da publicação da liminar, ativistas em vigília flagraram não só a derrubada de árvores e a destruição de ninhos de aves, mas também o despejo de concreto na base das árvores. Ironicamente, a prefeitura da vizinha São Bernardo do Campo sugere exatamente o contrário:


Jamais coloque concreto na base da árvore. Esse canteiro, chamado de "espaço árvore" é essencial para a sanidade da árvore. As raízes respiram e precisam desse espaço. Essa prática impede que as raízes tenham contato com o ar, água das chuvas e nutrientes vindos de matéria orgânica. Nesses casos, as chances da árvore adoecer e ficar susceptível a pragas são enormes.
(Extraído do primeiro item em “Dicas de Cuidados e Manejo de Árvores”, Secretaria de Meio Ambiente e Proteção Animal)

Como pode ser observado em reportagem recente do Universo Online, “o juiz Marcelo Sergio entendeu que a extração das árvores pode afetar o escoamento das águas das chuvas e exigiu uma avaliação técnica para verificar a viabilidade da continuidade da obra”, segundo liminar proferida pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo). A reportagem também deu conta de que 150 árvores já foram derrubadas e que a Secretaria de Habitação já desmarcou três reuniões com moradores das comunidades afetadas.

A liminar em segunda instância, como apontado em reportagem de hoje, 14, de VEJA, prevê multa diária de R$ 100 mil em caso de descumprimento. O desembargador Paulo Ayrosa reconheceu questionamentos sobre uma nascente natural e a existência de uma APP (Área de Proteção Permanente) do Córrego Embuaçu, embora o estrago já tenha sido feito, pois a prefeitura concretou parte dele, conforme mencionado pelo portal G1 em reportagem sobre a intransigência da prefeitura face às recomendações do Ministério Público – fato este que culminou na abertura da primeira ação para paralisação das obras.

O episódio envolvendo a Vila Mariana é um triste retrato de como políticas públicas reacionárias podem produzir resultados devastadores em meio a uma postura pouco participativa e aberta ao contraditório. Independente de como a população votou, o Brasil oferece garantias para criticar os rumos do Executivo paulistano. Ricardo Nunes foi eleito com certa margem de tranquilidade, mas não recebeu um cheque em branco para vomitar asfalto e concreto pelos quatro cantos da cidade.

Finalmente, é importante que o maior número de pessoas compreenda que sistemas viários como o defendido por Ricardo Nunes não são neutros: pelo contrário, estão associados à morfologia do tecido urbano, ou seja, a forma dos espaços que formam a cidade de facto. O perfil de todo o eixo formado por diferentes complexos, incluindo o da Sena Madureira, estabelece uma microdinâmica própria e nociva, conectando bairros de lotes de grandes dimensões a centralidades com deficit de urbanidade, além de ser mais um elemento de articulação viária em escala metropolitana e macrometropolitana, estimulando deslocamentos por transporte individual motorizado a partir de municípios num raio de 100 km ou mais de distância.


Colaborações: Lucian De Paula, pelo envio dos documentos do MP-SP e TJ-SP; Eduardo Ganança, pela observação de que o Complexo Viário Sena Madureira não terminará diretamente na Avenida Ricardo Jafet como alardeado



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