Por Caio César | 02/01/2025 | 9 min.
Índice
Prólogo
Este artigo é produto de uma série de comentários elaborados em abril de 2024, envolvendo uma verdadeira “salada” de assuntos interconectados.
Seu subúrbio não é especial
Sobre a privatização do trecho mais conflituoso da rodovia Raposo Tavares (entre São Paulo e Cotia), com previsão de alargamento, desapropriações e cobrança de pedágio, é preciso coragem para afirmar: quem se opõe também contribuiu para semear o projeto que se aproxima.
Quando o problema estava fora dos bairros afetados pela concessão, estava tudo bem. Pedágio na rodovia ditador Castello Branco? Ok. Pedágio no sistema Anhanguera-Bandeirantes? Manda bala. Pedágio na dupla Dutra-Trabalhadores? Excelente, principalmente na Dutra.
Ora, subúrbios como City Butantã, Granja Viana e tantos outros, não passam de pequenos pedaços da grande mancha de subúrbios carrodependentes que vampiriza a RMSP (Região Metropolitana de São Paulo)! Um tecido fragmentado e com heterogeneidades próprias, mas que, ainda assim, numa avaliação rápida, sincera e muito fria, não poderia ser resumido de outra maneira.
Aliás, falando em grande mancha vampirizada, não por acaso, as marginais Pinheiros e Tietê foram desenhadas para integrar rodovias como a Raposo Tavares. Em meio aos discursos oportunistas, elas seguem intocáveis e inexpugnáveis. As duas marginais, cicatrizes purulentas que milhares de pessoas amam odiar, não serão desmontáveis sem que o estado gaste dezenas de bilhões de dólares em infraestrutura. Com o nível risível do debate, será que há espaço para falar em desmonte?
Ademais, há outra boa dose de hipocrisia: considerando o tecido dos subúrbios tóxicos, fora os padrões socioeconômicos, é difícil crer que não exista forte carrodependência. A questão é que o suburbano carrista sempre tenta fugir dos problemas que o automóvel causa, desejando ruas calmas e pouco movimentadas na própria porta, mas sem se importar com congestionamentos no bairro ao lado. Até então, era sempre o “bairro ao lado metafórico” que recebia as infraestruturas pesadas. Amanhã, Butantãs, Altos de Pinheiros e um longo etecetera estarão, nada mais, nada menos, do que pagando pelo carrismo que eles mesmos exportaram e defenderam ao longo de anos.
Recentemente, o governo estadual anunciou a continuidade do Lote Nova Raposo, um dos vários pacotes do programa de desestatização de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Este desdobramento do Executivo paulista não necessariamente suscita uma derrota para o movimento Nova Raposo Não, que envolve diferentes organizações, algumas delas problematicamente reacionárias, como o Movimento Defenda São Paulo, e já angariou mais de 19 mil assinaturas contra o Lote. Na verdade, a ideia deste artigo é, mais uma vez, retomar a problematização em torno da reivindicação por transporte sobre trilhos, reiterada em reportagem recente do jornal SP2 da TV Globo.
É ridículo olhar para os eventos que se desdobram, percebendo que um pessoal que nunca foi muito fã de metrô, agora, vem falar em metrô; um pessoal que continua sendo contra adensamento, agora, vem pedir por uma infraestrutura que demanda adensamento para ser economicamente viável. É absolutamente ridículo, beirando o ofensivo.
Assim como na dramática situação da Radial Leste, mencionada posteriormente, a lição a ensinar é que, sempre que a possibilidade de ampliação rodoviarista aparecer, o discurso de melhoria do transporte precisa, de fato, ser usado em prol do transporte público.
Mentir não é uma opção
Há um fundo de verdade quando um indivíduo ou grupo de indivíduos expressa receios quanto a intervenções que possam dificultar a utilização de automóveis. No caso dos “três cavaleiros do apocalipse” da Zona Lesta paulistana e do Alto Tietê, também conhecidos como linhas 3-Vermelha, 11-Coral e 12-Safira, ninguém que não as enfrenta quer passar a enfrentá-las diariamente.
Engana-se quem pensa que qualquer um de nós conseguirá mentir para quem está dentro do automóvel. Infelizmente, nós, como sociedade, estamos devendo muitas coisas em toda a região metropolitana, consequentemente, o problema é muito maior do que um conjunto de linhas da rede. Para piorar ainda mais a situação, praticamente não há ninguém ajudando.
A Linha 3-Vermelha (Corinthians·Itaquera-Palmeiras·Barra Funda) tem filas para fora das estações e vive à base de trem-estratégia. Não recomendo isso para ninguém. É o inferno. A malha da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) está saturada e a estatal precisa fazer milagre com trilho da época do último imperador. Matematicamente, sim, a absorção das pessoas que trafegam em seus automóveis pela Radial Leste é trivial, mas existe um fator crucial, para além da ordem de grandeza: a absorção desse contingente não se daria nas mesmas condições às quais estão habituados. Eis um argumento muito mais difícil de dobrar.
Qual é a condição das linhas? Humilhante. Elas podem até absorver com o pé nas costas, mas a condição é de humilhação e necessidade de resistência física e psicológica. Poderíamos, sim, oferecer um serviço seletivo a uma complexidade relativamente baixa, mas não existe nada assim, e, se não existe, não tem como falar para o sujeito que demanda conforto, seja qual for o motivo, que existe uma alternativa em condição semelhante! Ela não existe e não tem horizonte para ser implantada.
Justificativa Considerando as últimas discussões que realizamos internamente a respeito do transporte sob demanda, uma das possibilidades levantadas é a de que o modelo do fretamento (quando pessoas ou grupos de pessoas contratam um ônibus para se deslocarem entre pelo menos dois pontos, a partir de necessidades em comum) possui o espaço e a força que conhecemos, sendo onipresente na capital paulista, devido à situação da malha de transporte sobre trilhos.
Ademais, para ser mais justo, não é só a Radial Leste: é a Radial, as marginais e todas as rodovias conectadas pelas marginais, na mesma escala de atendimento da rede de transporte sobre trilhos. Adianto que, sim, é óbvio que a capacidade da infraestrutura rodoviária é menor, sendo justamente o elemento que dá o tom da complexidade do tecido a ser atendido.
O sistema de trilhos, principalmente o que era o trem de subúrbio, foi implantado pensando numa população que viajava em condições insalubres, morria cedo e era moída pelas indústrias, logo, ele nunca se propôs a transportar uma classe média, pois ela não existia como existe hoje.
Nós, paulistas, continuamos endossando modelos suburbanos. Realisticamente, este Coletivo não consegue conscientizar, não possui a musculatura necessária para exigir ligações perimetrais já planejadas e só faz lamentar quanto às outras tantas ligações radiais que continuam engavetadas. As melhorias feitas no transporte público ao longo das últimas décadas revelam existência de demanda reprimida.
Horizontes móveis
A demanda reprimida e a sensação de uma interminável corrida contra o atraso não são apenas uma parte esperada do desafio envolvendo a infraestrutura da principal região metropolitana do estado, mas também demonstrações da persistência do rodoviarismo.
Enquanto o transporte metropolitano sobre trilhos cresce vagarosamente, o estado de São Paulo não só continua devendo trens regionais, como também deve uma concepção de malha capilar e capaz de romper com a ideia de que o pobre é numeroso demais e precisa viajar apinhado.
Como nós temos uma grande assimetria de representatividade, não temos um ciclo de participação envolvendo a população que mora nas franjas, porém, mesmo com a dificuldade de coletar a percepção popular, compreendemos que o transporte público em escala metropolitana impõe grandes deslocamentos em condição degradante, afinal, estamos falando de percorrer, facilmente, 30 ou 40 km sob estresse devido à superlotação — não fosse assim, a população não protagonizaria agressões gratuitas e mútuas a cada embarque nos picos, principalmente quando o trem parte da estação inicial e está vazio.
No começo de fevereiro um vídeo de um sistema de metrô venezuelano (provavelmente de Caracas) ganhou notoriedade, pois foi compartilhado por um humorista (veja aqui), com milhares e milhares de interações. Enquanto escrevemos, comentários, curtidas e compartilhamentos são feitos. Aparentemente o vídeo foi originalmente compartilhado há dois anos atrás, em um site de humor. As imagens não representam um sistema do qual temos vivência para falar, mas alguns comentários fazem menção a São Paulo e certas estações bem conhecidas, como a Estação Brás.
O COMMU foi criado justamente em resposta à condição dos embarques da CPTM, que eu enfrentava diariamente. E passei a enfrentar a CPTM porque cansei de usar a Linha 3 do Metrô. Naquele longínquo ano de 2013, os diálogos entre usuários e companhias não surtiam efeito, e parte dos interlocutores focava em reclamar de outros usuários ou em fatores comportamentais que não eram o cerne do problema (em outras palavras, nós pedíamos soluções estruturais, enquanto outros queriam matar quem não estava suficientemente perfumado). 2014 foi marcado pelo nascimento do COMMU, dando corpo ao anseio de conquistar soluções para as raízes dos problemas.
Vilão de conveniência
A ideia de saturação da infraestrutura de transporte também vai além das tensões e blindagens em torno dos automóveis: o adensamento é outro fator que estimula posturas egoístas e, não raramente, ignorantes. A ideia de que é equivocado adensar o entorno de linhas sabidamente saturadas, como o trio citado anteriormente, é reducionista demais.
Eis mais uma leitura comum de outro problema extremamente complexo: padrões de uso e ocupação do solo e sua relação com a acumulação de capital e geração de emprego e renda. É nossa obrigação discorrer sobre esses problemas, mas não parece adiantar fazer um embate direto.
Ao insistir no confronto, perdemos, porque a pessoa interlocutora vive o problema e não vai aceitar qualquer papo. A demanda da Linha 3 (ou da 11 ou da 12) não depende de adensamento, mas da falta dele. Linhas como a 3-Vermelha dependem de ônibus.
Finalmente, considerando a falta de crítica aos planos diretores e zoneamentos anteriores, talvez por envolver um contexto que não apenas atravessa múltiplas gerações, mas também barreiras na constituição da memória da cidade, é nítida a dificuldade que alguns têm para exercitar um pouco mais o caráter antes de falar. Com escassez de memória e egoísmo de sobra, não por acaso, espalhamos uma verticalização difusa e clubística.
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