Predinhos: egoísmo urbano “do bem” em reedição do Brooklin à Vila Madalena

Por Caio César | 03/01/2025 | 12 min.

Legenda: TiCO Indiana, prédio limitado por gabarito de 10 metros de altura a cerca de 2 km da Estação Brooklin. Créditos da imagem: Google Maps
Apartamentos em prédios de poucos andares têm sido oferecidos como uma alternativa a sobrados construídos décadas atrás e são parte de um estilo de vida retroalimentado por imobiliárias e corretoras de nicho em redes sociais

Índice


Motivação

Os chamados “predinhos” se transformaram numa espécie de “produto validado” para progressistas endinheirados que buscam localização estratégica, como bairros centrais com boa oferta de empregos e amenidades, com forte diferenciação em relação às classes médias e altas.

O desejo (ainda que velado) de exclusividade e filtragem socioeconômica robusta é ofuscado pela tentativa de convencimento (próprio ou auxiliado pelo mercado) de que tudo não passa da busca por uma relação charmosa entre pessoas e cidade, uma versão de aço e concreto da “gastronomia afetiva” que superfatura cafés e torradas no “bairro nobre” mais próximo de você.


Empreendimentos discutidos

Este artigo comenta dois empreendimentos ou produtos imobiliários: Indiana (TiCO Incorporadora) e Fradique 1597 (Só Predinhos). De fato, o artigo é produto de uma série de comentários elaborados em novembro de 2024, envolvendo prédios de baixo gabarito, ou seja, de poucos andares.

Enquanto a aparição mais recente do TiCO Indiana, se deveu à participação do nosso membro Lucian, que compartilhou uma publicação feita no Instagram (incorporada mais adiante), eu já havia tecido comentários antes quando ainda havia unidades à venda. Em suma, achei muito caro, ainda que tenha concordado que, pelo menos, era caro, mas charmosinho.

Já o Fradique 1597, o primeiro dos “predinhos” novos que serão comercializados pela Refúgios Urbanos a partir do braço de incorporação que nasceu da imobiliária, foi descoberto mais recentemente por mim, em mais um daqueles acidentes de navegação.

Nos dois casos, é especialmente problemática a estética descolada que se soma à negação da necessidade de urbanização mais acentuada em porções da cidade que estão associadas à presença de grandes corredores corporativos, como criticarei mais detidamente a seguir.

TiCO Indiana

O edifício TiCO Indiana já apareceu, pelo menos, duas vezes em discussões internas do Coletivo. Sua arquitetura, sem dúvidas, está acima da média, mas o que suscita minha preocupação não está na forma, mas na percepção de que ele parece fora de lugar, ou seja, de que sua função não parece condizente com o território no qual se insere.

Em outras palavras, exceto por um contexto improvável de superlotação, o empreendimento abrigará poucas famílias. Mais uma vez, o arcabouço urbanístico paulistano endossa a ideia de que qualquer tecido um pouco mais longe de uma estação de metrô (cerca de 2 km, no caso do empreendimento em discussão) pode ser tratado como subúrbio. Em alguns casos, não só pode, como é reiteradamente tratado como tal, com restrições adicionais.


Legenda: Texto da publicação feita pela conta cidades21 do Instagram argumenta que diferentes atores do mercado imobiliário estariam explorando terrenos de difícil utilização para incorporação.

Segundo a cidades21, produtos como o TiCO Indiana nada mais são do que demonstrações louváveis da nossa arquitetura e engenharia, força de uma vontade deliberada de buscar diferenciação explorando restrições. É importante observar que as restrições não são problematizadas, pelo contrário, são eufemisticamente atenuadas e positivadas pela expressão “arquiteturas que priorizam a escala humana e respeitam o contexto ao redor”.

Talvez o lote localizado à rua Indiana, 866, em pleno Brooklin, envolva desafios substanciais, como sugere o texto. Se fosse este o caso — o que não parece ser, pois uma visita rápida ao local faz parecer que os desafios seriam minimizados caso a incorporação envolvesse lotes vizinhos, ocupados por sobrados extremamente questionáveis —, o TiCO Indiana até seria razoável, mas não sem questionamentos, a começar pelo gabarito de 10 metros, uma arbitrariedade que limita a volumetria artificialmente, geralmente para forçar a construção de grandes casas e sobrados.

Sendo direto, o lote não tem nada de desafiador: o zoneamento é que é desafiador e desestimula incorporar ali, induzindo o congelamento da oferta e da morfologia. O marco regulatório desafia as vidas da maioria a partir de parâmetros estúpidos, ficando a serviço de uma população que merece rótulos ainda mais severos.

Sem utilizar a arquitetura e o empreendedorismo para erguer um escudo contra a críticas, num olhar mais frio, o que parece é que o TiCO Indiana, assim como outros empreendimentos mais recentes, é produto de uma operação sem a possibilidade de uma incorporação mais capitalizada, o que resulta em imóveis até que interessantes como produto, mas bastante questionáveis como cidade a longo prazo.

Em interlocução com o texto da cidades21, eu diria que o TiCO Indiana até pode apresentar uma escala humana no lote que ocupa, mas o contexto é tão ruim, que a humanização é dissolvida antes de nos darmos conta.

Enfim, os trinta apartamentos do TiCO Indiana são muito interessantes, é claro, mas o elefante na sala é mais interessante ainda: não fossem as restrições, principalmente o gabarito de 10 metros, poderiam ser centenas de unidades, não meras dezenas. Faz sentido precisar de um empreendedor “inspirado” e, ainda assim, terminar com um punhado de apartamentos numa cercania no “trecho premium” de uma das linhas de metrô mais novas da cidade?

Fradique 1597

Se o empreendimento anterior incomodou, o Fradique 1597 incomoda ainda mais, porque sua inserção é superior. Sei que é inconveniente, mas este Coletivo foi forjado nos trilhos da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e tem boa parte de suas atividades articuladas a partir da Zona Leste. Há que se voltar a bater na tecla do egoísmo urbano: gentileza e modicidade de preços — supostas, pois não as vejo — precisam mesmo ser sinônimo de pequenos empreendimentos nichados e de baixo gabarito dentro do Centro Expandido?

Estamos romantizando a produção de habitação bastante elitizada, simplesmente porque a formatação tem um apelo que agrada tribos que compõem o progressismo paulistano. Será que os incorporadores que estão apostando em “predinhos” não conseguem captar e, mesmo tendo de remunerar o financiador, ampliar um pouco mais o número de unidades?

Por mais tudo isso, a ideia de “miolo de bairro” é extremamente questionável do jeito que está.

Quando discuto sobre a baixa abrangência das zonas permissíveis à verticalização, que compreendem raios de menos de 600 metros, nos melhores casos (estações do sistema metroferroviário), não acho que o parâmetro que determina a proximidade do transporte foi chutado. E é aí que reside o maior problema. Legenda: As extremamente limitadas áreas de influência da infraestrutura de transporte público, recuperadas no âmbito da tentativa de revisão do Plano Diretor Estratégico pela atual gestão, por meio de um diagnóstico inicial Para contextualizar: neste artigo, falo, sobretudo, do ordenamento aprovado na gestão de Fernando Haddad (PT; 2013-2017), a partir de 2014, composto pelo PDE (Plano Diretor Estratégico, informalmente chamado de “plano” ou “plano diretor”) e pela LPUOS (Lei de Uso, Ocupação e Parcelamento do Solo, informalmente chamada de “zoneamento”).

Como adiantado na primeira seção, as redes sociais oferecem espaços que aglutinam indivíduos com preferências similares. As tais like-minded people, em inglês. A Refúgios Urbanos é uma imobiliária que não faz a menor questão de mirar numa família típica de classe média alta ou alta, recorte de renda que parece viabilizar a compra da maioria dos imóveis da imobiliária.

Percebendo uma tendência de mercado e com superfície de ataque muito menor em comparação com incorporadoras tradicionais, a Refúgios deu origem à Só Predinhos, inspirada na questionável visão de escala humana de Jan Gehl, célebre arquiteto que ajudou a impulsionar a ideia de que qualquer coisa minimamente alta (10 andares, por exemplo) é tóxica para a urbanidade.

Legenda: Vídeo focado em questionar os postulados do senhor Gehl, colocando uma discussão envolvendo desenho e economia, e, por economia, leia-se manejo da oferta e da demanda. Publicado no YouTube pelo canal Oh The Urbanity!

Até agora, a incorporadora Só Predinhos tem apenas um empreendimento em seu portfólio: o Fradique 1597, cuja página no site da imobiliária reforça a blindagem, explicando que a imobiliária não é apenas uma imobiliária, logo, a incorporadora também não é apenas uma incorporadora. Na prática, a fórmula é a mesma: atributos são esgarçados para massagear o ego de quem compra, minimizando a selvageria do capitalismo à brasileira. O parágrafo a seguir é especialmente delicioso para quem saboreia as hipocrisias cotidianas:

Portanto, no Fradique 1597 a gente tem tudo que gosta, um prédio baixo com apenas 3 pavimentos e opções de plantas confortáveis e flexíveis que podem ser modificadas para atender as suas necessidades.

Minha reação ao destacá-lo ao comentar a respeito com o Lucian foi bastante direta: “3 pavimentos, velho. 3 pavimentos”. É um produto com personalidade sem dúvidas, mas fora de lugar até mesmo em alguns dos subúrbios que sabotam o transporte sobre trilhos nos Estados Unidos, país que destruiu cidades para abrir espaço para estacionamentos e rodovias.

Legenda: Anúncio do Fradique 1597 na Refúgios Urbanos, capturado em 03/01/2025

Além da fórmula adotada pela dupla Refúgios e Só Predinhos não ser exatamente diferente daquela que converte áreas vegetadas em atributos de segregação socioeconômica deliberada, tema que pincelei aqui e aqui, porém, ao mesmo tempo, não passa de uma forma de vender outro tipo de luxo, um mais bem aceito por não transmitir (tanta) ostentação.

A descrição do empreendimento também contribui bastante para questionarmos a ideia de miolo de bairro. Grifos por conta da imobiliária.

Em poucos metros temos o famoso Empanadas, Coffee Lab e a padaria Villa Grano.

Temos também o maravilhoso Pé de Manga, Astor e o Saj, melhor restaurante árabe da região.

Pomar da Vila, Dia Supermercado, Pão de Açúcar Minuto, todos a menos de 5 minutos de caminhada, e farmácias a 150 metros de distância, isso para mostrar um pouquinho que de fato temos tudo por perto.

Beco do Batman está a pouco mais de 10 minutinhos de caminhada.

Transporte publico? Tem também! Temos dois pontos de ônibus sendo um na Fidalga e outro na Purpurina, ambos a menos de 200 metros do prédio e a estação de metrô Vila Madalena, a 1km de distância.

Aham, com certeza! Um apartamento de 130 m² num edifício de singelos 3 andares é o que precisávamos para estimular uma vida humilde, autêntica (afinal, cafona é sempre o outro) e baseada em profundas relações comunitárias! A periferia que lide com o conflito burguês de buscar amenidades enquanto rejeita densidades, normalizando eufemismos que minimizam o desejo de segregação e homogeneidade socioeconômica e étnica-racial.

Nem preciso dizer que o progressista descolado — duplo sentido intencional aqui — tratará o preço como aceitável para os padrões de SP: quase 2 milhões de reais para o tipo mais simples, de quase 100 m². Pechincha, nem que seja preciso forçar a barra fazendo chacota ou suprimindo evidências para livrar a própria consciência.

(In)felizmente, este artigo está sendo redigido por um morador da Zona Leste com histórico de laços em escala metropolitana. Pela mesma soma de dinheiro, eu compraria cerca de 300 m² na Praça dos Enfartados, numa região que também oferece sorvete artesanal (Goliat; Gelateria Montreal), empanada (Goliat), poke (Mana Poke), empada (Senhor Empadão) e outras delícias, além de uma unidade do mesmo Minuto Pão de Açúcar.

Cada vez mais, estou convencido de que o cerne das péssimas discussões urbanísticas está no consumo. Uma parcela do campo progressista parece viver uma síndrome de impostor quando se trata das trocas que realiza em um ou mais mercados. O consumo se entrelaça com uma série de padrões demográficos, dando indícios sobre renda, deslocamentos, nível educacional, entre outros aspectos. É a partir do consumo que sedimentamos nossa relação com a cidade.

Ora, se assumirmos que a pessoa interessada poderia limitar a necessidade de vir a São Paulo, R$ 2 milhões para morar numa cidade mais tranquila, a cerca de 1 hora do Tatuapé e com imóveis mais espaçosos em bairros tão agradáveis quanto seus similares paulistanos, não parece tão má ideia assim. O Parque Monte Líbano oferece uma experiência similar à de Pinheiros, só que Mogi das Cruzes é uma cidade muito menor e mais pacata, a cerca de 50 km da Zona Central paulistana.

Legenda: Anúncio de apartamento de luxo com metragem elevada, localizado a poucos metros dos principais estabelecimentos gastronômicos do Parque Monte Líbano, em Mogi das Cruzes. Preço é comparável a apartamentos em “predinhos” e “sobradinhos” descolados. Original: Chaves na Mão

É claro que alguém deve estar dizendo algo como “ah, mas os prédios em Mogi são cafonas”: beleza, é melhor prédio cafona por fora, mas que não é hipócrita por dentro! Nem a esquina mais luxuosa do Alto Tietê inteiro restringe tanto quantas pessoas podem morar.


Considerações finais

É compreensível que edifícios considerados charmosos ou indutores de proximidade entre vizinhos talvez sejam difíceis de criticar, além disso, também não é segredo que muito da produção formal parece preguiçosa, produzindo edificações com má qualidade arquitetônica. A provocação deste artigo, porém, é muito simples: arquitetura, comunidade e adensamento precisam caminhar juntos.

Condomínios de apartamentos grandes e em pequeno número também são bolhas. Bolhas com apelo a indivíduos pretensamente progressistas, mas bolhas, ainda assim. Diga-se de passagem, a ideia de baixinhos descolados na Vila Madalena não é exatamente nova, basta ver o portfólio da Idea!Zarvos ligado à Vila Madalena, por exemplo.

Será que não existe a possibilidade de construir edifícios capazes de abrigar mais pessoas, sem renunciar a uma arquitetura capaz de penetrar as subjetividades de certos indivíduos progressistas? Até quando vamos mascarar o desejo brutal de segregação em tecnicismos frágeis, como o “miolo de bairro” ou uma moralidade vazia em torno de inclusão social, ou noções de proximidade, ou distância de equipamentos e infraestruturas, como estações de metrô?

Quantos outros prédios de baixo gabarito interditarão o potencial construtivo de quadras no Centro Expandido? Por que faz sentido reforçar tipologias (legalmente impostas, a serviço de pequenos grupos de proprietários) que, há muito tempo, criam cidades paralelas ou virtuais dentro de São Paulo, nas quais não só a utilização indiscriminada do automóvel reina, mas a filtragem socioeconômica é violenta e externaliza a pressão da população trabalhadora, que precisa buscar favelas e loteamentos clandestinos, em alguns casos, apelando para municípios vizinhos.

Este artigo continua insistindo no mesmo ponto de sempre: mais gente precisa morar no Centro Expandido. É urgente. Chega de papo furado. Canalhice também pode ter grande estilo, mas continua sendo canalhice.


Colaborações: Lucian De Paula, responsável por iniciar uma discussão envolvendo dois dos três empreendimentos da supracitada publicação da cidades21



Se você ainda não acompanha o COMMU, curta agora mesmo nossa página no Facebook e siga nossa conta no Instagram. Veja também como ajudar o Coletivo voluntariamente.



comments powered by Disqus