Por Caio César | 19/01/2025 | 5 min.
A oferta de serviços de ride-hailing envolvendo motocicletas está longe de ser uma novidade na RMSP (Região Metropolitana de São Paulo). Empresas como a gigante chinesa DiDi Chuxing, proprietária da 99, já exploram o serviço na vizinhança invisível da capital paulista.
Em municípios como São Bernardo do Campo, por exemplo, não é muito difícil evidenciar o embarque de passageiros em motocicletas ao longo de avenidas como a Senador Vergueiro, mas apesar de toda a riqueza, o quinto PIB (Produto Interno Bruto) paulista virtualmente não tem relevância na discussão sobre a cidade de São Paulo, embora a cidade esteja conurbada e relativamente próxima da Zona Sudeste; em Franco da Rocha, um município bem mais pobre, a queda de braço foi perdida.
Apesar de ter incentivado a utilização de motocicletas com medidas de priorização viária de cunho duvidoso, o atual prefeito da capital, Ricardo Nunes (MDB), infelizmente reeleito, é contra o serviço. A apreensão de motocicletas é a faceta mais visível de uma disputa que já se arrasta há cerca de 2 anos (até mais, se considerarmos as investidas da Uber). O acirramento deve aumentar, inclusive, já que a 99 decidiu praticar dumping, aplicando descontos que podem reduzir os preços para alguns centavos.
Os descontos da 99 são “água e balinha” para construir um exército que, insatisfeito com restrições, tensionará o debate público, pressionando eventualmente o prefeito e o Legislativo. Receita manjada: a Uber fez o mesmo e deu muito certo. Se há mais trânsito, mais poluição, mais pressão previdenciária, mais mortos e acidentados no sistema público de saúde, mais necessidade de subsídio e/ou cortes no transporte público em virtude do buraco que foi aberto, enfim, não importa, porque o processo de desconvencimento é quase impossível de ser feito sem queimar muito capital político, afinal, ninguém gosta de ser chamado de idiota (ou, pior ainda, perceber que é idiota porque pagou para se prejudicar e ficar acorrentado a um serviço precário).
De qualquer forma, este artigo não é sobre idiotização, mas sobre vácuo institucional! Ora, é crucial perceber que, sem o desconto agressivo, os serviços não seriam substancialmente mais baratos do que ônibus, o que deveria suscitar reflexões sobre quais fatores estimulam a utilização de um veículo inseguro e desconfortável.
Na supracitada São Bernardo do Campo, além da tarifa substancialmente mais cara em relação à da capital (R$ 5,95 ante R$ 5), o desenho anacrônico da rede privilegia viagens diretas em detrimento da capacidade. Em outras palavras, o transporte de São Bernardo do Campo é uma bela porcaria, mas agrada parte da população que, num contexto de violência econômica e espacial, se contenta em ou normaliza poder viajar com apenas um ônibus, mesmo que isso resulte em longas esperas nos pontos, tarifas caras e trajetos demorados.
No caso paulistano, a rede está repleta de linhas com oferta substancial e a capilaridade do sistema de trilhos viabiliza uma lógica tronco-alimentada (também chamada de hub and spoke, em inglês), a qual tem sido lentamente reforçada desde a implantação do Interligado, no governo Marta Suplicy (PT). Apesar de leituras mais simplistas reduzirem o transporte da capital a uma lógica radial, simplesmente não condiz com a realidade.
Como a 99 está explicitamente priorizando viagens com origens e os destinos fora do Centro Expandido, ela está concorrendo com todas as linhas que alimentam os hubs, ou seja, os terminais que concentram viagens e oferecem acesso a serviços troncais. No contexto do leste paulistano, por exemplo, a 99 está concorrendo com todas as estações e terminais que possuem serviços para a Zona Central e outras centralidades relevantes, como linhas de ônibus para os terminais Parque Dom Pedro II e Princesa Isabel, e linhas do sistema metroferroviário que atendem e se conectam no eixo Lapa-Brás.
É urgente que o fenômeno seja compreendido. Historicamente, o sistema alimentador tem baixo protagonismo no ambiente de militância, já que o “núcleo duro”, aquele pessoal bacana que frequenta universidades de primeiro escalão e interfere no tecido intelectual político-partidário, parece demonstrar profundos vícios e raízes no Centro Expandido. Talvez, de repente, alguns dos nobres intelectuais de Pinheiros dirão que criticar o 99Moto é atentar contra o bem-estar dos pobres. Bobagem, a gritante falta de união e o amargo desinteresse contribuíram para o surgimento do 99Moto em primeiro lugar.
Espero ter deixado explícito que a oferta da 99 pode agravar ainda mais o financiamento e a utilização do transporte público coletivo, que só piora à medida que perde passageiros para serviços análogos a táxis de baixa categoria, minando a alimentação de estações e terminais, sem oferecer contrapartidas e sem a devida transparência, uma vez que não existe um arcabouço adequado para compartilhamento de dados.
Se a prefeitura de São Paulo sabe que vai acabar cedendo, como cedeu com a popularização de outros serviços precários mediados por atravessadores digitais, é urgente avançar para além de uma regulação rasa: é preciso capacidade regulatória concreta, por meio da formulação de políticas públicas. A implantação de outra categoria de atendimento, com linhas alimentadoras mais curtas em regime de tarifa zero, operadas com veículos menores e mais baratos, pode ser uma resposta à altura, mesmo que exija algum mecanismo de cobrança indireta, capturando parte da receita da 99 ou visando minimizar parte do prejuízo causado por quem utiliza o automóvel indiscriminadamente.
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