99Moto, sintoma da omissão e da preguiça (de burocratas a intelectuais)

Por Caio César | 19/01/2025 | 6 min.

Legenda: Ônibus da Linha 3729-10 (Shopping Aricanduva-Metrô Carrão) no Avenida Regente Feijó: linhas com perfil alimentador, onipresentes fora do Centro Expandido, passarão a disputar passageiros com o 99Moto
A disputa em torno do 99Moto é mais um episódio novelesco da irritante e pervasiva da reatividade política. A 99 só é assunto por encontrar um ambiente fértil. Estão dadas as condições para que ela coloque pessoas nas garupas das motocicletas que contrata com o piloto num regime de atravessamento que o país decidiu fingir que é uma simples troca entre particulares

Enquanto tratamos a 99 como uma barraquinha de churros em algum rincão, minimizando a presença da empresa, os problemas continuam se avolumando em meio à crise de representatividade que tem corroído a esquerda.

Olhares atentos devem ter percebido que o artigo anterior fez referência à proposta para um “sistema super local” – pela qual peço desculpas pela redação, pois suspeito que o texto foi retalhado para se adequar às limitações da prefeitura paulistana –, feita há cerca de quatro anos. É óbvio que nada aconteceu desde então, reforçando a noção de que o ambiente no qual 99, Uber e afins se instalam é fértil.

A oferta de serviços de ride-hailing envolvendo motocicletas está longe de ser uma novidade na RMSP (Região Metropolitana de São Paulo). Empresas como a gigante chinesa DiDi Chuxing, proprietária da 99, já exploram o serviço na vizinhança invisível da capital paulista. Em municípios como São Bernardo do Campo, por exemplo, não é muito difícil evidenciar o embarque de passageiros em motocicletas ao longo de avenidas como a Senador Vergueiro, mas apesar de toda a riqueza, o quinto PIB (Produto Interno Bruto) paulista virtualmente não tem relevância na discussão sobre a cidade de São Paulo, embora a cidade esteja conurbada e relativamente próxima da Zona Sudeste; em Franco da Rocha, um município bem mais pobre, a queda de braço foi perdida.

De 2021 para cá, nada foi feito para atenuar o nítido conflito entre pequenas viagens e o primeiro ou último trecho de uma viagem maior. Como seguimos numa ilusão mútua com casinhas “instagramáveis” de um passado fantasioso, a ficha da compactação ainda não caiu. E, se não caiu, vamos continuar pastando muito, bastante mesmo, arrastando nossos corpos por dezenas de km para fazer algum tipo de trabalho ou mesmo qualquer outra coisa, como tomar sorvete com algum sabor menos óbvio ou saborear uma carne num pão com gergelim.

Explico: a capital paulista tem uma rede de ônibus municipais de característica dual, ou seja, é uma rede dupla, resultado de dois modelos diferentes de operação, conhecidos como sistemas Local e Estrutural. O sistema Local é aquele originalmente composto pelas famigeradas lotações, ou seja, por vans que se formalizaram com ônibus pequenos (micro ou midi). No Local, há tanto linhas antigas, que eram operadas pela estatal CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos), quanto novas, que surgiram no seio do esfacelamento da CMTC e da incompetência dos operadores privados que receberam a bênção do então prefeito Paulo Maluf.

Já o sistema Estrutural é o típico sistema da burguesia do setor: grandes ônibus e grandes garagens, exigindo muito mais capital e tendo um caráter muito mais tradicional, justamente por se apoiar em tecidos historicamente mais viáveis para linhas rentáveis. Todos os ônibus articulados fazem parte do Estrutural, justamente porque as linhas tendem a possuir um caráter mais troncal, seja em grandes ligações radiais (centro-periferia), quanto em ligações diametrais ou inter-regionais (conectando zonas distintas sem passar pelo Centro Velho).

O município de São Paulo possui um dos maiores sistemas de ônibus do continente americano, no entanto, a promessa de uma reforma, dando continuidade ao choque de racionalização ocorrido durante a gestão da Marta Suplicy, então no Partido dos Trabalhadores (PT), jamais foi cumprida. Legenda: As duas tipologias de sistemas de ônibus comumemente adotadas (Guia TPC, p. 17) Seja pela ligação afetiva de alguns operadores com linhas com as quais sentem terem contribuído por um ou mais motivos, seja pelo populismo de políticos eleitos, seja pela ausência de infraestrutura ou resistência para melhor utilização da infraestrutura existente, São Paulo tem patinado na construção de uma rede de ônibus, que substitua o atual sistema, caótico, incoerente e com sérios problemas de velocidade média, oferta de lugares e articulação local e regional.

Acontece que o sistema Local, embora repleto de ligações frequentes e capilares nos bairros, é, também, refém de sua própria condição: são as linhas de caráter local que funcionam como verdadeiros tentáculos para fazer a ponte entre bairro e estação ou entre bairro e terminal. Com várias das estações em localizações cretinas, à beira de rodovias ou vias expressas, são as lotações as responsáveis por “levar o metrô até a cidade”.

É inviável fazer pequenos ramais para que uma única estação de metrô atenda os loteamentos que deram origens aos bairros de seu entorno; também é inviável pegar cada linha em direção aos principais terminais da cidade e alterar o itinerário para adentrarem nos bairros, pois isso dinamitaria a capacidade do sistema, rebaixaria a tipologia veicular — experimente entrar numa favela e imaginar um ônibus articulado de 23 metros serpenteando pelas ruas dela — e tornaria a vida da maioria um inferno sob a ilusão da redução de transferências.

Legenda: Os dois principais paradigmas de redes de ônibus (Guia TPC, p. 17). Na capital, a operação se aproxima do paradigma tronco-alimentado, também chamado de hub and spoke, em inglês

O resultado, que parece ser desconhecido por quem faz o debate público, dentro e fora do Estado, é um conflito permanente entre quem precisa chegar nos troncos e quem precisa percorrer trajetos internos nos bairros. Como a maioria dos bairros fora do Centro Expandido possui, no máximo, um comércio de apoio, o conflito está dado: levar uma criança à creche ou tentar buscar um remédio no posto de saúde se transformam numa luta, pois a pessoa se depara com ônibus superlotados com pessoas trabalhadoras, que não desembarcarão até que o coletivo estacione no terminal da estação de metrô a qual se destina.

Legenda: Interior de um ônibus da Linha 3763-10 no horário de vale, às 16h27 de 19/08/2022. Preciso dizer que a linha pertence ao sistema Local?

Será que não deveríamos pressionar o poder público a buscar meios de interpretar melhor os padrões de viagens que fujam da pendularidade tipicamente associada com o trabalho presencial? Os aplicativos que abusam da frouxidão regulatória provavelmente estão acumulando muitos dados às custas da maioria, sem qualquer transparência ou compromisso com o bem-estar da população e da própria cidade.

Alternativamente, será que já não passou da hora de implantar ligações de caráter local de maior capacidade? Desde ônibus articulados até bondes (também chamados de veículos leves sobre trilhos), as opções existem há décadas, mas não estão sendo devidamente exploradas.

A ausência de ligações expressas, mesmo que restritas aos horários de pico, também é preocupante. O luxuoso sistema viário da cidade continua pouco otimizado para oferecer conforto e rapidez para quem utiliza ônibus. O problema não é a suposta rusticidade do modo ônibus, como se fosse algum tipo de transporte público de segunda classe, mas sim o tratamento de segunda classe dado ao transporte coletivo por ônibus, marginalizando e oprimindo as pessoas usuárias.

Graças à nossa falta de vergonha na cara, vamos colocar ainda mais gente na garupa de motocicletas conduzidas por uma categoria mal remunerada. Quando seremos, como sociedade urbana, nossa maior prioridade? Precisamos respeitar a cidade e quem nela vive, pois quem nela vive somos nós mesmos. Será que nossa capacidade de identificar e buscar soluções para problemas está limitada a reagir diante da parca cobertura jornalística?

Que venham os acidentados. Enquanto tivermos uma esquerda comprometida com a proteção de sobradinhos idealizados e carreatas de Celta, jamais teremos estômago para caminhar diante do triturador de vidas que é São Paulo e sua região metropolitana.




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