O contorcionismo urbanístico de Bob Fernandes e Mauro Calliari

Por Caio César | 22/01/2025 | 10 min.

Legenda: Adaptado de “Torre Eiffel vista da Tour Montparnasse”. Local: Paris, Ilha de França, França. Data: 19/05/2014. Foto: David McSpadden, Daly City, Estados Unidos da América, Wikimedia Commons, licença CC BY 2.0
Num cansativo zigue-zague, âncora e entrevistado vão de Paris a Balneário Camboriú, mas exageram no senso comum e se perdem nas próprias opiniões, nem sempre bem embasadas. Mais uma vez, é possível testemunhar a defesa de cidades contraditoriamente densas, mas pouco verticais

Em 21 de janeiro, Bob Fernandes entrevistou o doutor em urbanismo Mauro Calliari, que mais uma vez poderia ter sido menos genérico e mais cuidadoso em suas colocações, principalmente após nos presentear com platitudes em torno da rodovia Raposo Tavares no final de 2024.

Legenda: Vídeo de 21 de janeiro do canal de Bob Fernandes

Sendo muito objetivo, eu perdi uma hora do meu precioso tempo para ouvir ainda mais platitudes! O âncora, apesar da longa trajetória jornalística, não parece ter se preparado adequadamente e deixou escapar muito senso comum sobre temas ligados ao urbanismo, num país que, como admitiu o doutor, tem a maioria de sua população vivendo em cidades. Será que a maioria de nós não merecia mais respeito?

Além da perda de tempo, foi preciso muita paciência e certa ginástica mental: referências extremamente móveis dominaram praticamente toda a conversa. A escala do Brasil foi esticada e encolhida ao sabor do momento, tornando muitas das afirmações confusas, contraditórias ou frágeis, num vai e vem que chegou a ficar ligeiramente constrangedor em alguns momentos, principalmente nas tentativas escancaradas de puxar a conversa em direção a Salvador — Calliari é um intelectual paulistano.

Em linhas gerais, sim, o Brasil sofre com baixos padrões de urbanidade, mas o tom da crítica pareceu ser subjetivo e arbitrário. Quais são os melhores exemplos do país? Quais são os piores? Podemos agrupar os exemplos de alguma maneira? É claro que alguns bons exemplos foram citados, como a Orla Conde/Bulevar Olímpico (oficialmente Orla Prefeito Luiz Paulo Conde), no Rio de Janeiro, mas quase nada pôde ser extraído devido à ausência de uma abordagem mais sistemática e metódica.

Alguns dos balanços feitos por Mauro, como aqueles envolvendo a verticalização de Balneário Camboriú e São Caetano do Sul, transpareceram que a estética está acima de qualquer critério técnico. Ao longo da conversa, Mauro defendeu uma cidade que se adensa suavemente e que rejeita edifícios de mais de 6 ou 8 andares, implicando que hoje há uma dicotomia entre prédios altos e prédios baixos, o que não é bem verdade, principalmente no caso de São Caetano do Sul, da capital paulista e de outras cidades da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo).

Na verdade, Calliari praticamente deixou claro que o problema de Balneário Camboriú são os edifícios altos. Concordo que há exagero e gosto duvidoso, mas não posso deixar de comentar que, além do uso misto reconhecido por Calliari, há ainda tarifa zero e algum esforço para proporcionar atividades turísticas que ofereçam alternativas à orla. O maior problema de Balneário Camboriú está na histórica incompetência do estado catarinense, que não desenha boas políticas públicas para desafios compartilhados, como saneamento e mobilidade, algo nevrálgico devido aos desafios que envolvem ambas Camboriú e Balneário Camboriú, além de municípios como Navegantes, que abriga o principal aeroporto da Costa Esmeralda.

Legenda: Vídeo de 12 de janeiro do canal São Paulo nas Alturas. A partir dele, podemos resumir que o problema de Balneário Camboriú não é Balneário Camboriú, mas outras cidades brasileiras, poupadas de críticas, ainda que sejam turisticamente irrelevantes, tenham vida noturna virtualmente inexistente, proíbam uso misto e estejam repletas de edifícios arquitetonicamente ruins

Já no caso de São Caetano do Sul, a cidade foi resumida à urbanização mais recente da região do Espaço Cerâmica, assinada pela Sobloco Construtora. Ficou parecendo que São Caetano do Sul abandonou completamente a “vida de rua” (para usar o mesmo termo do urbanista) e os espaços públicos, sendo que, nos últimos anos, a cidade implantou tarifa zero, iniciou a reforma do terminal de ônibus vizinho à estação da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), inaugurou um parque e requalificou áreas centrais que priorizam pedestres (sobre o último ponto, veja aqui, aqui e aqui).

Francamente? Uma salada. Muitos problemas misturados. Muitas escalas misturadas. Muitas cidades misturadas. Isso tudo para não falar das denúncias performáticas de Bob Fernandes, beirando um tipo de irresponsabilidade que só esperaria encontrar no lamaçal da extrema-direita. Sinto pena de quem busca erudição e cai numa armadilha com uma hora de duração.

O saldo da conversa, para mim, morador da Zona Leste, reforça meus dissabores com relação aos especialistas ligados ao Centro Expandido. Vejo pessoas com grandes currículos e extensas trajetórias, mas disseminadoras de visões muito limitadas. A empáfia é tanta, que transborda. Sobrou até para São Caetano do Sul.

“Todo mundo quer poder morar numa casa, ou num bairro que tenha uma verticalização não tão grande”, assim começa a fala de Paula Santoro, uma das representantes da intelectualidade da Universidade de São Paulo (USP). A construção de prédios em vez de casas vai desconfigurar bairros, destruir quadras e, por consequência, modos de vida. O alerta é da coordenadora do LabCidade, @paulafsantoro. Em entrevista na @CBNoficial , Paula detalhou os efeitos nefastos do PL da revisão do Plano Diretor.

A crise habitacional em São Paulo é, sem dúvidas, severa, mas ela não pode, como aparentado, ser alvo de contorcionismo às custas das humilhações que envolvem milhões de habitantes. É claro que não podemos normalizar a urbanização difusa e rodoviarista, como corretamente alertou Mauro, porém, nem de longe significa que bairros ajardinados precisem de políticas de adensamento suave e preservadoras de morfologia, com duração de um ou dois séculos.

Não, as mansões de bairros como Jardim Europa e Jardim América não devem ser convertidas em moradias para apenas duas, três ou quatro famílias, como tem acontecido (não sem luta) em alguns subúrbios extremamente tóxicos da América do Norte; também não adianta a denúncia (ainda que vazia) de que favelas e loteamentos clandestinos ficam de fora de planos diretores, quando o diagnóstico da cidade formal não interpreta a pressão corretamente.

A verticalização dos bairros ajardinados é urgente. Defender, ainda que sutilmente, a preservação dos bairros-jardins, desnuda a hipocrisia do discurso, que não é exclusivo da entrevista aqui discutida. Ao longo da entrevista, há o argumento de que a verticalização está associada a posturas especulativas historicamente pouco combatidas (caso da progressividade no imposto sobre a propriedade, admitidamente preterida por suposto desinteresse político), consequentemente, resulta em muito adensamento construtivo e pouco adensamento populacional, porém, as seguintes questões ficam sem resposta:

  1. Por que o adensamento sem alteração morfológica estaria imune a posturas especulativas?
  2. Dados os níveis de especulação do argumento, os quais não são claros, apesar da ilação em torno dos imóveis vazios, adensar suavemente proporcionaria habitações mais viáveis do que adensar restritivamente?
  3. Tomando Barcelona, Copenhague e Paris são utilizadas como benchmark,
    • Seria correto afirmar que possuem morfologias caracterizadas pela presença de grandes lotes (500 m² ou mais) em áreas centrais de uma área relativamente comparável ao Centro Expandido, consequentemente, justificando um adensamento restritivo?
    • Qual seria a metragem predominante dos apartamentos nos edifícios de baixo gabarito?
    • Similarmente, houve avaliação do estoque em escala metropolitana e regional, ou seja, da existência de urbanização difusa associada à oferta de trens metropolitanos, trens intercidades, bondes e trens de alta velocidade uma vez que esta relativiza o tempo e permite deslocamentos entre espaços fragmentados ou descontínuos, com elevada concentração de renda e sofisticação comercial, contrastando com a paisagem de tecidos precariamente adensados e periféricos em relação às múltiplas centralidades paulistanas?
  4. Considerando o caso de Melbourne, também mencionada ao longo da entrevista, o qual admitidamente envolve um contexto de maior toxicidade devido à suburbanização de feições rodoviaristas,
    • Quais são os fatores que a validam como bom exemplo no contexto da capital paulista e sua região metropolitana?
    • Não seria o caso de Melbourne similar à aguerrida luta por adensamento que tem ocorrido em múltiplas cidades dos Estados Unidos, nas quais associações de bairro, sob o disfarce da participação popular, exacerbam o direito de propriedade de maneira tal que Mike Davis, citado por David Harvey, observa a existência de um ambiente microfascista?

Paris, utilizada como exemplo com bastante licença poética, está muito mais próxima da suposta dicotomia brasileira em prédios e casas, ainda que sem a disseminação de grandes condomínios-clube. A diferença sublime, no caso de Paris, é que ninguém se presta à defesa ultrajante de bairros centrais de mansões, simplesmente porque não parece existir nenhum. Existem edifícios de baixo gabarito, vários deles com apartamentos insalubres e minúsculos, bem como imensos subúrbios de casas. O dilema envolvendo espaço e localização é ditado pela estética, salvo algumas exceções, como a região de La Défense, uma espécie de centralidade de negócios, já fora dos limites de Paris, mas dentro da região metropolitana.

Em outras palavras, Paris não é um bom exemplo e São Paulo não carrega herança similar. Temos inúmeros edifícios irrelevantes que podem ser demolidos sem prejuízo e sem qualquer alarde. Saliento que, quando tais imóveis estão localizados num eixo de estruturação do plano diretor, a fachada ativa em novos empreendimentos verticais, é obrigatória, ao contrário do que ficou parecendo na conversa dos dois figurões. Espero não precisar explicar também que temos muitos prédios baixos construídos em décadas passadas e, até mesmo, prédios de baixo gabarito novos, inclusive, escancarando quão violenta e injusta é a conciliação do ordenamento territorial da capital.

Motivação Os chamados “predinhos” se transformaram numa espécie de “produto validado” para progressistas endinheirados que buscam localização estratégica, como bairros centrais com boa oferta de empregos e amenidades, com forte diferenciação em relação às classes médias e altas. O desejo (ainda que velado) de exclusividade e filtragem socioeconômica robusta é ofuscado pela tentativa de convencimento (próprio ou auxiliado pelo mercado) de que tudo não passa da busca por uma relação charmosa entre pessoas e cidade, uma versão de aço e concreto da “gastronomia afetiva” que superfatura cafés e torradas no “bairro nobre” mais próximo de você.

Ninguém aqui é trouxa, viu, doutor Mauro? A ampliação do acesso ao ensino superior não serve apenas como mera retórica eleitoreira, mas também tem efeitos práticos, um deles é que elementos marginais e irrelevantes ganham capacidade para questionar intelectuais que, até ontem, gozavam de prestígio inquestionável devido à baixíssima mobilidade social e acadêmica ainda que o Brasil do passado vergonhosamente proporcionava. Não mais.

Vale apontar ainda que uma vasta porção da cidade de São Paulo é mista (mescla residências e comércios) e só permite edifícios de até 8 andares e sem obrigação de fachada ativa, os quais dividem espaço com casas térreas e assobradas, além de edifícios mais antigos. Como morador da Zona Leste, estou de braços abertos para receber o doutor na minha vizinhança e me coloco à disposição para ajudar na mudança.

Legenda: Mesmo com a grita de endinheirados em torno da revisão do ordenamento paulistano, podemos observar que os maiores incrementos de potencial construtivo (e, consequentemente, de adensamento populacional) se dão em áreas periféricas, como no extremo da Linha 5-Lilás, na região do Capão Redondo, e nos antigos subúrbios da EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil), ao longo de eixos viários como Radial Leste, Anhaia Mello e Sapopemba e das linhas 3-Vermelha, 11-Coral, 12-Safira e 15-Prata. Fonte: Insper/Laboratório Arq.Futuro de Cidades, Acesso a Oportunidades no Plano Diretor de São Paulo (9 de novembro de 2023). Clique numa imagem para abri-la e ampliá-la

O mapa acima ilustra a desonestidade intelectual de quem faz malabarismos segregacionistas, pois: (i) os eixos sofrem esgarçamento narrativo, correspondendo a uma área bem limitada; (ii) muitas áreas do Centro Expandido a 15 minutos de uma estação não permitem verticalização intensa; e (iii) o contraste entre centro e periferia é nítido, ficando explícito que não houve um “libera geral” pelo Legislativo, bem como que muito da cidade está gabaritada a no máximo 8 andares, com porções relevantes abrigando zonas residenciais ainda mais restritivas.

Finalmente, muito pouco foi falado sobre especulação, tema que supostamente nortearia a discussão. A solução de formação de estoque público é pertinente, mas é uma gota num oceano de hipocrisia e preservação de privilégios. Pelo teor das audiências e outros espaços, incluindo discussões e entrevistas, não há desejo concreto de ampliar moradia social a partir de exemplos como a austríaca Viena, ou a cidade-estado de Singapura, mas sim de preservar o status quo. Não por acaso, a cobrança de impostos progressivos no tempo não está na agenda das associações de bairros nobres – bairros estes que são racistas e preconceituosos em colunas na Fórum ou CartaCapital apenas quando conveniente.




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