Por Caio César | 28/01/2025 | 11 min.
E se a gente buscasse evitar que a capital paulista tenha bairros moedores de pobres, como a Cidade Tiradentes? O problema é que alguns de nós estamos prometendo descentralização indiscriminada, quando toda a sociedade deveria buscar a democratização do acesso (e, por acesso, estou falando de conseguir morar) às centralidades.
Lamento, mas o que o Boulos (PSOL) está sugerindo não é factível. Na verdade, é ilógico. Não é utópico, porque numa utopia, ninguém seria jogado num bairro inóspito de conjuntos habitacionais em primeiro lugar. Em qualquer circunstância, a Cidade Tiradentes não possui justificativa para existir. Ela existe porque houve uma decisão deliberada de preservação da paisagem. Essa decisão não só afetou classes médias, que, quando afortunadas, se instalaram em cercanias razoáveis de algumas linhas de alta capacidade do sistema de trilhos, mas também os mais pobres.
Dissemos — nós, a sociedade paulistana —, em alto e bom-tom: vamos jogar milhares de pobres num lugar inóspito, quase em Ferraz de Vasconcelos, porque não estimularemos uma cidade mais plural ao longo da Linha 1-Azul. Bairros como a Vila Mariana e a Saúde poderiam ter abrigado a Cidade Tiradentes. Apartheid.
O economista Rodger Campos argumenta em artigo de 27 de janeiro para o Caos Planejado que,
Aparentemente, muitas pessoas paulistanas confundem segregação com qualidade de vida. Existe uma compreensão distorcida de vários atributos e problemas, em outras palavras, São Paulo é incorretamente interpretada. A descentralização, além de já ser uma realidade, não é, como adverte Campos, uma panaceia. Ao mesmo tempo que a região da Alameda Rio Negro, em Barueri, é um exemplo da busca pela descentralização em escala metropolitana, também se aproxima do apontamento feito pelo economista: possui um dos m² mais caros da região, resultou em encarecimento num grande vetor que toca o noroeste e o sudoeste da região metropolitana e carece de articulação adequada entre empregos e transporte de massa. Sem dúvidas, a Alameda Rio Negro abriga um tecido acima da média em termos de amenidades e oportunidades, mas num balanço envolvendo toda a região, será que não teria sido melhor urbanizar de maneira mais compacta e estimular deslocamentos menores, concentrando e aproximando oportunidades?
Ora, é assim que chegamos numa esquerda que defende bairros ajardinados com imóveis custando trivialmente R$ 10 milhões. É assim que uma figura ligada à luta por habitação se presta a gravar um vídeo dizendo que "Pinheiros pede socorro", enquanto transmite à periferia a ideia de que um carro popular é indispensável, quase um traço inseparável do sujeito periférico, praticamente um elemento tribal.
Vale ainda dizer que, com todos os problemas, São Paulo já é relativamente descentralizada — e para muito além do exemplo “manjado” de Alphaville que ofereci acima. A região metropolitana da capital, recorrentemente esquecida, apenas na sua porção oriental, oferece uma série de centralidades em municípios como São Caetano do Sul, Santo André, São Bernardo do Campo e Mogi das Cruzes, as quais apresentam variados graus de articulação com centralidades da vizinha Zona Leste, como o Tatuapé.
Introdução Em dezembro de 2023 — sim, este texto está sendo publicado depois de meses na gaveta —, trouxe alguns artigos para discussão entre membros ativos do COMMU (por meio do grupo fechado que possuímos no Telegram). Curiosamente, os artigos foram encontrados por mim acidentalmente, a partir de uma sugestão do YouTube para um vídeo. O que começou com uma severa denúncia sobre más condições de trabalho terminou com longas e dramáticas histórias sobre a crise habitacional que assola o estado de Connecticut, na metrópole tri-estadual que também envolve os estados de Nova Iorque e Nova Jérsei, na costa leste dos Estados Unidos.
Enquanto as declarações de Guilherme Boulos foram feitas em 25 de janeiro, três dias antes, Nabil Bonduki (PT) opinava no Instagram sobre o imbróglio envolvendo o mapa de zoneamento, produto de uma ação ligada a uma associação de moradores de um bairro de mansões cujo nome não maculará este texto. É praxe em discussões envolvendo o ordenamento territorial que figuras de bairros centrais façam apelos para que mandatos de esquerda adotem medidas contrárias à migração populacional. Mais uma vez, tentamos, em vão, dialogar com quem distorce a realidade para justificar uma cidade fragmentada e excludente.
Sim, o bom e velho fascismo de vizinhança, que adora teses vulgares em torno da ideia de descentralização, está presente em alguns dos comentários. A interação com uma seguidora de Bonduki foi especialmente digna de nota, já que resumiu muitos dos ataques que recebemos durante a revisão do Plano Diretor Estratégico e da Lei de Uso e Ocupação do Solo, arrastada por vários anos. Boulos precisa decidir se quer trabalhar em prol da pessoa humana que vive na Cidade Tiradentes e promover justiça, possibilitando mobilidade socioeconômica, ou se quer trair a confiança da periferia defendendo uma fantasia enquanto protege bairros centrais, agradando pessoas como a seguidora de Bonduki que também não será nomeada.
O primeiro elemento da discussão com a seguidora é muito simples: cobrar adensamento do bairro central ‘A’ implica no desinteresse de melhorar o bairro periférico ‘B’. Além de uma coisa não anular a outra, já que “melhoria” pode ser virtualmente qualquer coisa, não significa que o bairro periférico ‘B’ poderá oferecer o mesmo desenvolvimento humano do bairro central ‘A’, nem que a população terá as mesmas capacidades para exigir “melhorias”. É claro que o elemento em questão, além de estar a serviço da violenta assimetria socioeconômica que se cristaliza na paisagem, também está imbricado com o automóvel.
Para a seguidora de Nabil, adensar populacionalmente o Centro Expandido é “afogar o trânsito todo”, mas… será que é justo abordar a distribuição populacional a partir da geração de viagens de caráter rodoviário? O COMMU é um coletivo voltado ao transporte coletivo. Obviamente o trânsito de veículos não é nossa principal preocupação, pois preferimos depositar tempo e energia pensando a circulação de vidas humanas usando modos eficientes e sustentáveis. Arriscando rispidez, mas sendo igualmente direto e didático: quem mora no Centro Expandido deveria usar o transporte público, andar a pé e de bicicleta, não usar carro para andar 1 km da própria casa até a Swift, projetando o vício em volante em moradores metafóricos.
É possível que a vida no Centro Expandido acabe por criar possibilidades de interação com a cidade que simplifiquem as relações entre indivíduo e o meio no qual se insere, afinal, a concentração de renda, empregos e negócios parece ser muito maior na Vila Mariana do que na Cidade Tiradentes, não é mesmo? É por isso que a concentração de empreendimentos em bairros centrais não surpreenda, embora também não surpreenda a dificuldade de oferecer unidades mais baratas.
Particularmente, não me sinto preso ao bairro 'A' ou 'B', ou nutrindo relações simples com o território da região metropolitana. Mesmo tendo vivido muitos períodos de sufoco, ainda assim, consegui desfrutar de relações muito além da escala da quadra, justamente porque meu cotidiano dependia do transporte sobre trilhos. Com um pouco de imaginação, percebi que poderia aproveitar determinadas relações, como o momento que se iniciava após o expediente, para visitar municípios distantes da minha casa, mas próximos do local de trabalho.
É claro que a crítica não se prendeu apenas à tentativa rasa de interdição do debate, como se a periferia estivesse numa posição de vampirização dos bairros centrais por pura acomodação, mas transportou a ideia de reserva do sistema viário para o debate também. Toda a verticalização foi generalizada a partir de “prédios imensos” com “vaga de garagem no entorno das linhas de transporte”, quando a realidade é mais complexa. Aliás, a média de pavimentos nas zonas que incentivam a verticalização girava em torno de 15 andares, segundo o estudo de 2023 “As regras para vagas de garagem na revisão do Plano Diretor de São Paulo” do Insper.
Infelizmente, figuras como Guilherme Boulos e Bob Fernandes já disseram (ver aqui e aqui) que edifícios maiores demandam ruas e avenidas mais largas. Como podemos culpar percepções distorcidas quando nomes proeminentes da esquerda defendem cidades hostis? Bonduki também cometeu deslizes ao disparar contra um arranha-céu no Tatuapé às vésperas do segundo turno da última eleição.
A combinação entre edifício alto e oferta de vaga de garagem ocorre há décadas, não só na capital, mas em outras cidades da região metropolitana. Infelizmente, não há histórico de luta contrária crível. O histórico é por preservação de privilégios e manutenção do status quo.
Haddad defendeu a decisão de manter mais de uma vaga de garagem nas avenidas com oferta de transporte público - um artigo que, conforme o Estado adiantou, não foi vetado. Incluído na última versão do projeto, o artigo 174 permite ao mercado vender - nos três primeiros anos a partir da implementação da lei - apartamentos com uma, duas ou mais vagas de estacionamento nos chamados "eixos", em vias com metrô e corredores de ônibus.
De acordo com o prefeito, a permissão é uma "indução importante", já que os empreendedores têm "resistência" de construir nos eixos. A regra passa a ser o tamanho da unidade, já que a lei abre a possibilidade de uma vaga a cada 60 m². Hoje a legislação prevê só uma garagem - acima disso, é preciso pagar taxa extra.
(Fragmento da reportagem “Impossível agradar a todos, diz Haddad sobre zoneamento em SP” do Estadão, reproduzida pelo Diário do Grande ABC, 23/03/2016)
Muitos dos novos apartamentos em edifícios altos são quitinetes e não possuem vagas, para não falar da expansão da oferta nas periferias com unidades de até 40 m² em edifícios de até 8 andares, normalmente, sem vaga de garagem. Toda essa generalização é um desserviço e revela como a indignação é extremamente seletiva, justamente porque esgarça meia dúzia de quadras com zoneamento estimulador de verticalização, enquanto ignora a vastidão do restante do tecido.
Aliás, a leitura do estudo do Insper do qual o gráfico abaixo foi extraído revela uma preocupação com unidades de 35 m² ou menos, indo na contramão da narrativa envolvendo apartamentos maiores e dotados de uma ou mais vagas de garagem.
Sem surpresa, em meio à discussão, também surgiu o argumento de que basta equipar periferias e os empregos surgirão. Assim como acontece com Boulos e outras figuras, houve a defesa de um modelo de urbanização difusa, deseconômica e incentivadora do uso indiscriminado do carro. Queremos a miséria urbanística do interior dos Estados Unidos em São Paulo? Será que não é hora de dizer “já deu”? Chega de apartheid perfumado.
Cerca de uma década após a criação dos eixos de estruturação urbana, continuamos encontrando indivíduos defendendo a ideia de saturação e de preguiça: todo mundo é preguiçoso e impiedoso com relação ao Centro Expandido nessa narrativa. O microfascismo de vizinhança segue rotulando como inimigos aqueles que não apoiam medidas anti-migração e pró-segregação. Lamentável, pois o microfascismo de vizinhança vem se fortalecendo apoiado por esquerda eleitoralmente acovardada, que não tem coragem de apontar que as zonas-eixo são uma porção minúscula da capital, e que muito do tecido já foi explorado no ordenamento permissivo do passado.
A própria paisagem está contradizendo afirmações que são lugar-comum no progressismo. Alguém precisa de ajuda para circular pela cidade e observá-la mais cuidadosamente? Alguém precisa de ajuda para compreender a importância da eliminação dos recuos e como outros aspectos são regulados (ou não), como arborização, espelhamento da fachada, calçadas acessíveis e que não criem problemas de microdrenagem, entre outros aspectos?
Será que, no lugar de buscar conceitos como “ilha de calor” para defender que a mancha continue avançando pelos remanescentes de mata, não seria melhor refletir se o aquecimento dos microclimas não tem relação com o uso exacerbado do automóvel e o tipo de sistema viário adotado? Defender cidades espalhadas e rechaçar adensamento é praticamente uma defesa do aquecimento.
O bem-estar de uma minoria jamais deveria depender do sangue de uma maioria oprimida.
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