Concessão de mais duas linhas da CPTM levanta preocupações

Por Caio César | 09/02/2025 | 10 min.

Legenda: Estação São Caetano do Sul em 27/03/2024; trem alinhado com destino à Estação Rio Grande da Serra
Apesar de contrato longo (31 anos), material rodante, estações e evolução tímida na oferta de lugares incomodam. Entenda alguns aspectos questionáveis e se prepare para as audiências em São Paulo, Santo André e Guarulhos

A futura Linha 14-Ônix da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) terá impressionantes 32 km (10 km a mais do que a Linha 3-Vermelha, que parte das estações Palmeiras·Barra Funda e Corinthians·Itaquera) e tem motivado preocupações quanto a seu desempenho e capacidade: a adoção de bitola internacional e a opção por trens mais leves, cujos detalhes nunca foram verdadeiramente revelados ao público, se traduzem em perda de capacidade potencial e impossibilidade de interoperabilidade com a Linha 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra, futuramente Bom Retiro-Rio Grande da Serra), que também será concedida em conjunto com a 14-Ônix — projeto conhecido como Lote ABC Guarulhos.

Legenda: Características mandatórias dos trens leves da futura Linha 14, conforme anexo II.F do contrato (p. 10). Piada. Só agora, a poucos dias das audiências e da consulta pública, sabemos que os trens previstos serão de piso baixo, apesar da linha prever traçado predominantemente elevado e trechos com túneis e poços de ventilação

Até o momento da publicação deste artigo, a SPI (Secretaria de Parceria sem Investimentos; grafia deliberadamente incorreta) ainda não disponibilizou a pilha de slides exibidos para o Executivo andreense, assim, para não depender de gotas que escorrem pelos sites especializados, só nos resta gastar o tempo que não temos folheando os documentos preguiçosamente disponibilizados pelo governo Tarcísio (Republicanos).

A Linha 14-Ônix é uma ligação de caráter perimetral nordeste-sudeste, conectando Guarulhos e a região do Grande ABC sem passar pela Zona Central da capital paulista. Com a Linha 14-Ônix, passa a ser possível sair de Mogi das Cruzes e chegar a Santo André atravessando a Zona Leste de São Paulo. A necessidade de percorrer os trilhos paralelos à Radial Leste e se transferir no Brás para depois “voltar para a periferia” deixa de existir, pois a pessoa viajante em nenhum momento precisa sair da periferia.

Legenda: Provável traçado e estações da Linha 14, conforme anexo II.B do contrato (Diretrizes para empreendimentos em via permanente e rede aérea; p. 46). Clique na imagem para abri-la e ampliá-la

A princípio, muito interessante, mas a Linha 14 não oferece méritos à postura privatista do atual governo, a qual encontra ambiente fértil graças ao acovardado governo federal, que tem colocado o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) como avalista e vem surfando em diferentes contratos. A Linha 14 é uma promessa antiga da CPTM. É importante observar ainda que, apesar do mapa e do diagrama acima, todas as estações após a ABC, localizada na região da antiga Parada Pirelli, no trecho Estádio-Jardim Irene, são contingentes e dependem de “formalização de execução por parte do poder concedente”, conforme anexo II.A do contrato.

Em consulta ao edital da concorrência internacional intermediada pela SPI, sabemos que o sequestro prevê 31 anos de insegurança econômica e habitacional para todos os territórios afetados, além de incluir não apenas os serviços do Trem Metropolitano, mas também do Expresso Turístico com destino a Mogi das Cruzes e Paranapiacaba (p. 1).

O ESTADO, na qualidade de PODER CONCEDENTE, por intermédio da Secretaria de Parcerias em Investimentos – SPI, órgão da Administração Pública Direta do Estado de São Paulo, sediada no Estado de São Paulo, no Município de São Paulo, neste ato representada pelo Senhor Secretário de Parcerias em Investimentos, no exercício das competências que lhe foram atribuídas pelo Decreto nº 67.435, de 01 de janeiro de 2023, torna públicos, pelo presente EDITAL da CONCORRÊNCIA INTERNACIONAL nº [●]/[●], os critérios e as condições para seleção e contratação da CONCESSÃO PATROCINADA da prestação do serviço público de transporte de passageiros sobre trilhos das LINHAS 10 – TURQUESA e 14 – ÔNIX no sistema ferroviário do ESTADO DE SÃO PAULO, compreendendo operação, manutenção, conservação, aquisição de MATERIAL RODANTE, implantação de obras civis e sistemas, melhorias, requalificação, adequação, modernização e expansão, bem como a operação do EXPRESSO ABC, EXPRESSO PARANAPIACABA e EXPRESSO MOGI, nos termos do CONTRATO.

A LICITAÇÃO é aberta a LICITANTES nacionais ou estrangeiros, isoladamente ou reunidas em CONSÓRCIO, e o critério de julgamento será o de maior desconto percentual ofertado sobre a CONTRAPRESTAÇÃO PECUNIÁRIA FIXA e CONTRAPRESTAÇÃO PECUNIÁRIA VARIÁVEL, nos termos estabelecidos neste EDITAL, no CONTRATO e nos correspondentes ANEXOS. O PRAZO DA CONCESSÃO será de 31 (trinta e um) anos, contados nos termos do CONTRATO.

A PPP (parceria público-privada) envolvendo as linhas 10 e 14 é extremamente delicada. Não só pela duração do contrato, mas também pelas obrigações e perda de solidariedade com a Linha 7-Rubi (Brás-Francisco Morato-Jundiaí, futuramente Palmeiras·Barra Funda-Francisco Morato·Jundiaí), culminando na extinção da operação unificada que recebeu o nome de Serviço 710. Algumas das questões mais complexas envolvendo interoperabilidade estão entranhadas na documentação e não são de fácil interpretação pela população em geral.

A parceria aqui discutida, por exemplo, não só adota trens mais leves para uma linha nova de mais de 30 km em bitola internacional (mais estreita do que a utilizada pela Linha 10 e outras linhas da CPTM), mas também continua mantendo nomes errados para serviços com caráter precário — fruto de pura politicagem marqueteira do passado que contamina o futuro. Na página 14 do anexo II.B, por exemplo, o Expresso Linha 10 continua sendo chamado de Expresso ABC e se insere como parte da infraestrutura de um futuro TIC (trem intercidades, também chamado de trem regional).

Legenda: Otimização do plano de vias da Linha 10-Turquesa insiste na previsão de um serviço regional conflituoso e baseado em desvios, sem expandir o Expresso Linha 10 para a Estação Mauá, consequentemente, mantendo engavetado o Expresso ABC original. Clique na imagem para abri-la e ampliá-la

Mais uma vez, o atual governo, provavelmente se baseando em estudos pouco conhecidos feitos por consultorias que não são publicamente escrutinadas, toma decisões questionáveis. Não só a infraestrutura para um suposto TIC é extremamente anêmica, mesmo com a remodelação do plano de vias, como o Expresso ABC original continua engavetado, em outras palavras, existem indícios de que, no próximo meio século, o serviço jamais funcionará bidirecionalmente em vias exclusivas, com intervalos razoáveis e terminando no município de Mauá. Sem falar de que estamos falando de mais de quinze anos de enrolação (veja aqui, aqui e aqui).

Quando o governo decide optar pelos VLTs (veículos leves sobre trilhos) na Linha 14 e opta por uma linha predominantemente elevada, ele também está condenando a paisagem a um impacto visual maior do que aquele provocado pelas linhas em monotrilho (as quais atraíram muito mais polêmica), além disso, há múltiplos trechos em túnel, somando alguns quilômetros de extensão. Considerando que há previsão de utilização de explosões controladas para os túneis (p. 96) e adoção de múltiplos elevados (p. 94), realmente não faria sentido adotar o padrão ferroviário pesado já vigente no Trem Metropolitano, permitindo interoperabilidade plena? Parece uma economia burra. Infelizmente, a escassez de informações e a falta de discussão prévia e ampla limitam um melhor julgamento sobre a tomada de decisão, incluindo considerações mais precisas sobre os trechos em superfície (p. 97) e potenciais conflitos (supostamente mais fáceis de serem mitigados com trens leves).

No momento, o único mecanismo tangível de reversão da trajetória quanto à escolha do material rodante da futura Linha 14-Ônix recai sobre a concessionária, conforme item 4.3 do anexo II.F, que prevê que “a CONCESSIONÁRIA poderá apresentar uma solução de MATERIAL RODANTE alternativa, que não seja a de VLT, à ARTESP e ao PODER CONCEDENTE, até o término da FASE PRÉ-OPERACIONAL”. É mole? Parece curto-prazismo burro. Aparentemente, o papel aceita tudo e os malabarismos para associar trens mais baratos a uma demanda três vezes menor não são claros.

No anexo II.A, tanto a estação Bom Retiro, quanto a Estação Parque da Mooca, foram consideradas como empreendimentos para reconstrução, sendo que se trata de construção, pois nada foi construído no passado para ser reformado ou reconstruído no futuro, o que pode ser tanto um equívoco, quanto um sinal de que a implantação será iniciada por outra concessionária ou pelo poder concedente em outro contrato. A tabela, reproduzida a seguir tal qual se encontrava no anexo, também levanta outros pontos que suscitam questionamentos.

Legenda: Tabela de empreendimentos civis em estações, presente no anexo II.A (p. 31-33)

Vamos a eles:

  1. Por que não seria possível preservar pelo menos uma das estações da antiga EFSJ (Estrada de Ferro Santos-Jundiaí) na Linha 10 e construir uma estação nova a poucos metros de distância, como nos casos de Ipiranga e Utinga, por exemplo?
  2. Considerando que há previsão de reconstrução de estações como Prefeito Saladino, as obras de acessibilidade realizadas, ao avançarem para além de intervenções simples, não representaram desperdício de dinheiro público?
  3. Por que Prefeito Saladino, que não é uma estação central, será reconstruída, mas não São Caetano do Sul (recém-reformada), Santo André (carente de intervenções) e Mauá (carente de intervenções)?
  4. Com a reconstrução de Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, quais garantias teremos para preservação e utilização do patrimônio histórico, sem repetir o que aconteceu em Franco da Rocha?
  5. Considerando as possíveis dificuldades para compatibilização de fluxos na Estação Corinthians·Itaquera, que não possui integração liberada durante toda a operação comercial, não teria sido inadequado prever uma integração com a futura Linha 14-Ônix nela? Por que não há detalhes mínimos da solução de integração no anexo pertinente?
  6. Não seria possível projetar a Linha 14 até o Terminal Metropolitano Ferrazópolis, prevendo melhorar a conexão entre a periferia de Santo André e a porção mais central de São Bernardo do Campo, possivelmente, melhorando o comportamento da demanda no trecho contingenciado?

Vale dizer ainda que paraciclos e bicicletários não recebem a devida atenção ao longo do anexo. Em nenhum momento, fica clara a quantidade de vagas mínimas ou as características mínimas desejáveis, apenas sabe-se que deverão funcionar durante toda a operação comercial (conforme p. 18 do anexo III.C). Também não fica clara a necessidade de reforma da Estação Guapituba via termo de cooperação com a concessionária MRS, conforme preconizado no anexo II.D, isentando tanto o poder concedente, quanto a futura concessionária.

Outro ponto da concessão bastante indigesto diz respeito aos intervalos máximos previstos. É péssimo. Além do pouco avanço em relação à oferta atual da CPTM nos primeiros 8 anos (na verdade, são os mesmos, conforme item 6.2.1.1 do anexo III.A), não há clareza sobre quanto a situação melhora entre os anos NOVE E TRINTA E UM. É isso mesmo. O intervalo da Linha 14 começa em desagradáveis 15 minutos nos dias úteis, independente de condição de pico ou de vale e cai para 10 minutos depois do nono ano.

Legenda: O eleitorado paulistano pediu e o governo está entregando precariedade e mesquinhez garantida por contrato. Linhas novas nascem com intervalos ruins, linhas antigas continuam com horizonte lamentável de ampliação da oferta, contrariando diagnósticos de décadas atrás (como citado nas páginas 17 e 18 do Plano Metropolitano de Desenvolvimento Integrado de 1970, citadas pelo Coletivo em 2018)

Todo o arcabouço prevê a regulação por meio da ARTESP (Agência de Transporte do Estado de São Paulo), que garantirá a lotação mínima entre 5 e 6 pessoas por m². Se uma lotação, digamos, de níveis europeus de 4 pessoas por m² for observada, o poder concedente degradará o serviço, conforme item 6.2.2.1 do anexo III.A, além disso, conforme item 6.2.2.2.2, a concessionária também poderá fazer propostas descabidas para ampliação da infraestrutura e, sendo estas rejeitadas pelo poder concedente, operar em condição de superlotação (mais de 6 passageiros por m²). A concessionária também poderá implantar serviços diferenciados com tarifa abusiva para eventos geradores de demanda, como shows em arenas multiúso (conforme item 1.1.13 do anexo XII). Uma beleza.

Similarmente, nada impede que a interoperabilidade seja comprometida de outras maneiras, basta que a ARTESP aprove, conforme item 2.2.1 do anexo II.F. Qualquer captura regulatória poderá introduzir profundas disfuncionalidades.

Lembrando que a CPTM já é, há muito tempo, um balcão de negócios, algo que ficou nítido pelo anexo III.B, que lista todas as prestadoras contratadas só no âmbito da Linha 10. A tabela foi claramente montada por alguém incompetente no Excel e desatento na utilização do Word, que não se atentou quanto à formatação dos números de contratos e do índice. São quase 40 contratos, entre eles, o da implantação da nova sinalização, celebrado há mais de quinze anos.

Outros aspectos provavelmente passaram batido. O material a ser escrutinado simplesmente supera as nossas capacidades. Não é viável perder dias olhando editais e contratos repletos de anexos.

Vemos, mais uma vez, repetição de práticas duvidosas num contexto de mobilização social baixíssima, desinteresse do ativismo mercantilizado por um punhado de empresas do terceiro setor e virtual inexistência de cobertura jornalística, que se limita a textos rasos, geralmente. Mais do que uma mera privatização, o desmonte da CPTM tornará ainda mais difícil a reivindicação de melhorias e fragmentará a experiência de utilização do sistema metroferroviário num contexto de difícil mobilidade socioespacial.




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