Paisagens invisíveis

Por Caio César | 06/04/2025 | 24 min.

Legenda: Acesso ao módulo 1 do Terminal Nicolau Dedic, vizinho à Estação São Caetano do Sul da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos)
Esta antologia consiste na adaptação de pequenos textos produzidos para publicação no Instagram. Trata-se de uma série de dez provocações, cada uma com cerca de 2 mil caracteres, originalmente publicadas entre 3 de março e 24 de março deste ano. A série seleciona e resume diferentes temas que atravessam os transportes públicos, reforçando que trens e ônibus não operam no vácuo

Índice


Pequenas alterações foram realizadas para explorar possibilidades inexistentes na rede social, além disso, foram feitas pequenas alterações para adequar o conteúdo à proposta do site.


Superlotação: subproduto de uma paisagem excludente

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 3 de março. Trem superlotado no Serviço 710 (embarque para viagem entre as estações Ipiranga e Santo André), pico vespertino. Clique para abrir e ampliar

O problema nunca foi "gente demais". Fim de papo. Não ataque as periferias. Questione privilégios.

Ninguém aqui está dissimulando. Ninguém aqui está defendendo construtora.

Sabemos muito bem o que estamos apontando. Quem reclama, quem torce o nariz, quem debocha, aparentemente, também sabe.

Quando o Centro Expandido não é alvo de boas políticas habitacionais, as periferias sofrem os efeitos, mesmo as ricas, mesmo aquelas no sentido mais geográfico do termo, envolvendo municípios do interior, a 80 ou mais km de distância da Praça da Sé.

Depois do greenwashing, vem aí o timewashing? Na primeira metade de setembro, eu comentava com outros integrantes deste Coletivo sobre o que denominei “mais uma suburbada no oeste”. Após abordar o empreendimento Fazenda Itahyê, chegou a vez de falar do DISTRITQ (lê-se “distrito”), da incorporadora Arqos. Mais um empreendimento que recicla a ideia de centros de apoio da Alphaville Urbanismo, porém, sem arrasar o meio físico (terraplanando e criando urbanizações suscetíveis a alagamentos, para ser gentil na crítica).

São Paulo protege bairros centrais expandidos, não lida com os problemas da porção central histórica e empurra milhões para longe. Tem sido assim há muitas décadas.

Nunca defenderemos porções de Pinheiros com cafés caros e sobrados imensos com duas vagas de garagem.

É isso mesmo! Chegamos num ponto em que a agenda do progressismo paulistano tem viés tão elitista e performático, que a conversão entre território-cliente e patrimônio traduz muito do abismo político existente. O abismo é profundo. Algumas das pautas exigem patrimônios que, transportados para municípios do sudeste, do oeste e do leste metropolitanos, se traduzem numa vida monárquica, com imóveis imensos e “salário de juiz”.

Com o preço de um sobradão naquele “oásis” em Pinheiros, é possível morar em 300 m² num apartamento duplex no melhor ponto de Mogi e ter R$ 4 milhões rendendo todos os meses. É possível morar num duplex assinado com arquitetura “de grife” no bairro mais boêmio e gastronômico de Santo André, com parque e trem na porta.

O recente caso do Quadrilátero Vilas do Sol, mais uma vez, expõe uma argumentação criativa (para não dizer desonesta) e polarizadora, que pouco contribui para a construção de uma agenda robusta em torno da melhoria da urbanidade das cidades da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo). Pelas falas de Nabil Bonduki (PT), vereador eleito na última eleição, a região apresenta um modelo que equilibra a verticalização. Discurso perigoso. Luxo, herdeirismo e hipocrisia.

Nós sabemos identificar o abismo, porque ele se manifesta nos transportes públicos e na maior parte do tecido diariamente. O contraste é constante, como uma onda de choque violenta que insiste em nos acertar, dia após dia.

Nós somos a maioria. Ponto final.

Nós já percebemos que o problema de representatividade atravessa muito mais do que renda. Envolve colégios particulares, sobrenomes, trajetórias acadêmicas, hierarquias partidárias e muito mais.

Já percebemos e não seremos ludibriados por chacota barata contra “novos-ricos”, “ricos cafonas” ou qualquer outro rótulo malabarístico.

Vamos continuar perturbando. Boa viagem.


Especulação precisa ser tratada com impostos

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 3 de março. Região da avenida José Antônio de Almeida Amazonas e da rua Catequese, na porção mais central de Santo André. Clique para abrir e ampliar

Não confunda especulação com atividade construtiva. Pesquise e converse sobre IPTU Progressivo.

Recorrentemente, a atividade construtiva é tratada como vilã, deixando questões regulatórias mais delicadas em segundo plano.

A acumulação indiscriminada de imóveis por investidores não será coibida impedindo a construção de novas edificações, mas sim com instrumentos tributários, como a progressividade no imposto sobre tais propriedades.

Com a aplicação do IPTU Progressivo no Tempo, a ociosidade é desestimulada, uma vez que o imposto encarece a manutenção e endivida o proprietário, estimulando o retorno da propriedade ao mercado. Combinada com o direito de preempção, pode permitir a formação de estoque para locação social e outras finalidades de controle do défice habitacional pela municipalidade.

Na imagem que acompanha esta seção, podemos verificar múltiplos terrenos ociosos numa área estratégica de Santo André, município do Grande ABC (Sub-região Sudeste da Região Metropolitana de São Paulo).

Nossas cidades precisam de maior oferta. Desestimular a construção, mas sem atacar o acúmulo indiscriminado e a ociosidade, é uma postura preguiçosa.

Questões regulatórias mais ligadas a áreas nobres e centrais da capital, como a locação temporária, também não deveriam ser usadas como muleta para a agenda secundária (e reacionária) que visa preservar paisagens com densidade aquém da esperada em virtude da infraestrutura instalada.

Finalmente, quando o perfil das unidades produzidas não oferece capilaridade adequada para segmentos de menor renda, como também deveria ser óbvio, não é barrando a construção de forma generalista que o problema será resolvido.

Na próxima revisão do plano diretor e do zoneamento da sua cidade, cuidado com as agendas secundárias de quem exporta miséria e destruição ambiental para defender uma cidade estática e insustentável.

A esquerda não é chamada a preservar sobrados de milhões de reais, mas a garantir intervenções necessárias para promoção de bem-estar e diversidade. Quando a esquerda o faz, revela uma postura clientelista que privilegia atores já privilegiados do mercado imobiliário — e a assimetria de poder entre grandes incorporadoras e proprietários milionários não torna a postura da esquerda menos elitista.


Nas periferias depositaram milhares para segregar

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 3 de março. Fotografia do Conjunto Habitacional Santa Etelvina. Fonte: arquivo da Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) na dissertação “A COHAB-SP e uma nova política habitacional: o período 2001-2004” (p. 40). Clique para abrir e ampliar

Conjuntos habitacionais foram e continuam sendo "esponjas" a serviço da segregação espacial.

Vamos falar de transporte público? Vamos. Por que colocamos milhares de pessoas para sofrer diariamente na Cidade Tiradentes?

Para não transformar a paisagem dos bairros ao redor do Centro, no Centro Expandido, ou lidar com as questões da propriedade pulverizada da porção mais histórica, economicamente esvaziada e repleta de problemas que jamais são resolvidos por completo.

Múltiplos conjuntos habitacionais foram construídos em locais sem infraestrutura, inclusive locais com geomorfologia difícil, exigindo soluções de engenharia para fazer frente às grandes movimentações de terra e desmatamentos.

Ermínia Maricato falou a respeito com maestria. Wellington Ramalhoso abordou o tema a partir das lentes do processo de implantação da então Linha Leste-Oeste (atual Linha 3-Vermelha).

Introdução Começo este artigo dizendo que as discussões mais importantes parecem surgir pelos motivos mais errados. O caso do adensamento e da verticalização numa das mais populosas regiões do estado de São Paulo, não é exceção. E não é a primeira vez. Contexto: a Porte, uma construtora sediada no Tatuapé, responsável pela verticalização de parcelas relevantes da região, com um passado talvez não muito brilhante em termos arquitetônicos, decidiu que viraria a página: adotou uma linguagem arquitetônica mais contemporânea, passou a ser mais cuidadosa e decidiu incorporar uma espécie de “espírito bratkeano”, tomando para si o desafio de estimular o surgimento de uma “Berrini local”, batizada de “Eixo Platina”, em alusão à Rua Platina, paralela à Radial Leste.

Não faltam fontes. Falta vergonha na cara.

A Zona Leste abriga vários conjuntos habitacionais: de fato, somos 35% da população.

Lamentavelmente, apesar da concentração populacional do leste paulistano, a visibilidade é quase nula na arena da política urbana. Aqui na Zona Leste, ninguém surge para dizer que o bairro A ou B está “pedindo socorro” por questões estéticas ou de incomodidade que, face aos problemas de regiões como a da Estação Guaianazes, parecem piadas de mau gosto.

Na verdade, até há quem ouse fazer proselitismo de caráter duvidoso dizendo que edifícios de luxo são o “ícone da degradação urbana”, enquanto nossos rostos estão colados nas portas dos trens todas as manhãs ou parecem um retrato fantasmagórico de uma massa proletarizada resignada.

Recentemente, o recém-eleito vereador Nabil Bonduki (PT) — resultado para o qual contribuí, pois era um dos menos piores, e preciso dizer com todas as letras que assim o considerei — deu continuidade à sua esteira de vídeos curtos no Instagram. Ver essa foto no Instagram Uma publicação compartilhada por Nabil Bonduki (@nabil_bonduki) Legenda: Vídeo publicado em 24 de outubro no Instagram. “Ícone da degradação urbana” Na mira da metralhadora de platitudes empunhada pelo professor da USP (Universidade de São Paulo), estava a região na qual nasci e vivo: a Zona Leste paulistana.

Não, o Centro Expandido não é denso demais, nem tem prédio demais. O Centro Expandido tem gente de menos e influência demais. A expectativa de vida reduzida de quem tem teto, mas não dignidade, é o combustível que historicamente fortaleceu a preservação de paisagens irracionais.

A Cidade Tiradentes é espelho da falta de noção que, ainda hoje, mesmo com muito calor, trens pegando fogo e água de coloração estranha saindo das torneiras, continua mostrando seus efeitos.

Que tal falarmos da verdadeira degradação mais vezes? Que tal falarmos de transporte público com mais força de vontade?

Segregados no espaço. Unidos na Internet.


Descentralizar ou… silenciar prometendo o impossível?

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 4 de março. Estação Cidade Jardim e alguns dos edifícios de apartamentos mais caros da América do Sul. Clique para abrir e ampliar

Banalizar a reprodução da economia de escala dos centros é, apesar de conveniente, negacionista e inviável.

Nas disputas que envolvem o marco regulatório, as preferências estéticas, as restrições de acesso à cidade e geração de empregos, a descentralização está sempre presente.

Quem não gostaria de poder encontrar emprego, lazer, cultura, educação e muito mais sem precisar percorrer grandes distâncias, não é mesmo?

O problema é que a ideia é banalizada, como se a construção de centralidades fosse uma mera canetada. Não é. Nunca foi simples.

A Região Metropolitana de São Paulo é relativamente descentralizada, principalmente em relação à oferta de comércio e serviços e alguns empregos. Ela não é toda descentralizada, muito menos igualmente descentralizada. Pesquisas como a Origem e Destino contribuem para a percepção de concentração desconcentrada. O Centro Expandido da capital ainda é o maior ímã de viagens.

A banalização da descentralização é uma estratégia retórica que esvazia a luta por mobilidade espacial e econômica, ou seja, a luta para facilitar mudar de endereço, se aproximando ou se afastando do trabalho com maior facilidade. Hoje, infelizmente, muitas pessoas estão economicamente acorrentadas ao endereço no qual nasceram, quando muito, podendo se mudar para um raio de alguns quilômetros.

Cerca de metade da população da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) reside nos 38 municípios que orbitam ao redor da capital e, mesmo dentro da capital, parcelas significativas residem a uma distância considerável (a 20, 30 ou mais km de distância) das novas centralidades constituídas ao longo do rio Pinheiros, como Vila Olímpia, Itaim Bibi, Berrini e Faria Lima. Por que um morador da Zona Leste deveria tratar o parque Ibirapuera como principal parque do município, quando reside a uma distância mais curta dos parques do Carmo, do Piqueri ou do Ceret?

A sustentabilidade e democratização da cidade formada por mais de 20 municípios nas regiões metropolitanas de São Paulo e Jundiaí, as únicas atendidas pelo sistema sobre trilhos de alta capacidade, passa pelo aumento da oferta de moradia nas centralidades existentes, muitas das quais são de baixa densidade ou vizinhas de áreas de baixa densidade.

Mais do que falar em descentralização, deveríamos discutir a capacidade de redistribuição populacional a partir da oferta de moradia, buscando instrumentos tributários e governamentais concretos, incluindo a produção pública de moradia.

Finalmente, como também já discutimos, a ideia de descentralização, ao ser capturada por atores com segundas intenções, também esbarra em contradições severas, pois no modo de produção capitalista, centralidades cristalizam capitais na paisagem, ou seja, a paisagem é transformada pela acumulação de riqueza, poder e influência de determinados indivíduos.

O artigo a seguir é uma adaptação de uma sequência de posts no X, feita em 22/12/2023 pelo nosso membro Caio César, que marcou a Rede Nossa São Paulo. Naquele dia, a Rede deu ênfase para dois parágrafos da reportagem “Novo zoneamento de SP melhora a sua vida? Veja o que dizem construtoras, especialistas e vereadores” do Estadão. Legenda: Story publicado pela Rede Nossa São Paulo no Instagram Mais uma vez, a Rede Nossa São Paulo está negando as próprias pesquisas que conduz.

Não é trivial. Cuidado com ilusões.


Precisaremos de um teto mais longe de tudo ou já tá bom?

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 4 de março. Situação da Linha 11-Coral (Luz-Estudantes) sentido Estudantes em um sábado típico, na Estação Tatuapé e na extremidade da plataforma, que costuma ser mais vazia. Clique para abrir e ampliar

Os trens andam cheios. Mesmo num sábado, é fácil viajar em pé por mais de 50 km. Faz sentido espalhar mais?

Se há um atributo perverso nas disputas que encaramos, é a negação do tamanho da mancha urbana. Tem gente que não sabe usar o Google Maps ou se nega a fazê-lo, quase como uma monstruosidade incapaz de se olhar diante de um espelho.

A maioria, porém, vive a monstruosidade diariamente, percorrendo cada veia, cada espinho, num ciclo de dependência e exploração que só termina quando a vida se dissipa.

Quando disputamos a segregação defendida grotescamente por conselheiros e/ou indivíduos que integram associações de bairro, sabemos muito bem o que estamos fazendo.

Ninguém aqui vai minimizar os efeitos da periferização.

Dizem até que bairros como Vila Mariana ou Pinheiros não possuem capacidade para tolerar novos moradores e, por isso, construir mais prédios seria absurdo, mesmo se a densidade construtiva não se traduzir em aumento significativo da densidade habitacional.

Papo. Furado. Papo furado!

No subterrâneo da política da Região Metropolitana de São Paulo, dominada por um punhado de feudos de burgueses e aburguesados, a palavra de ordem é expulsar.

Para proteger meia dúzia de quintais, devastamos territórios equivalentes a cidades europeias. Toleramos a destruição, a informalidade. Aprisionamos quem já nasce sem perspectivas de dignidade. Normalizamos uma vida subumana àqueles que são, muitas vezes, o lado mais humano das nossas cidades, carregando-as nas costas arduamente.

Contextualização Recentemente, veiculamos em nossas mídias (Telegram, Mastodon e Facebook) um artigo do portal ((o))eco sobre emergência climática e, francamente, é doloroso compartilhar qualquer material a respeito. Se, de fato, estamos cruzando a linha e impondo danos irreversíveis ao planeta, pelo visto, o recado ainda não chegou na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). A ideia de emergência climática, mesmo que respeitada e propagada pelo campo progressista, não está devidamente conectada com as ações enérgicas necessárias para frear a catástrofe produzida pelo egoísmo e ignorância do ser humano.

Já estamos morando em cidades como Mogi das Cruzes para trabalhar na Berrini, na Faria Lima, na Paulista. É muito longe. Cansa. Quão longe teremos de ir ainda, principalmente se quisermos um imóvel formal, fugindo de favelas e loteamentos clandestinos? Teremos de costurar um tecido contínuo entre a Região Metropolitana de São Paulo e suas vizinhas, unindo Guararema a Jacareí e Itapevi a São Roque?

Relativizamos nossas distâncias e nosso tempo e, consequentemente, nossa longevidade. Quantos anos mais desperdiçaremos engaiolados em trens e ônibus, para terminar girando as manivelas e puxando as alavancas da economia perfumada e teatral das principais centralidades?

Uma região incrível, é claro, mas para quem? E por quanto? O consumo pode até ser uma válvula de escape, mas nem sempre.


Associações contrárias ao bem-estar da maioria de nós

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 4 de março. Embarque no pico da manhã na Estação de Transferência Santo Amaro-Brooklin do Corredor Metropolitano ABD, que compartilha tráfego de linhas municipais e intermunicipais. Clique para abrir e ampliar

Associações de bairro não costumam ser solidárias com periferias. Cuidado para não defender segregacionistas.

Diante de mesas presididas por figuras ilustres da esquerda, cidadãos e cidadãs dos chamados bairros nobres fazem exigências estapafúrdias, que, em nenhum cenário minimamente razoável, seriam toleradas ou consideradas compatíveis com valores progressistas.

Tem de tudo:

  • Condicionar a construção de edifícios em bairros centrais à produção de prédios-espelho nas periferias;
  • Defender a expansão da malha como uma maneira de impedir o adensamento nas estações existentes;
  • Supervalorizar características irrelevantes para garantir filtragem socioeconômica e étnica-racial, sob adjetivos vazios como “ambiência”, incluindo corromper instrumentos de tombamento e preservação, se necessário;
  • Criar um labirinto burocrático atenuado por suposto desejo de preservação ambiental, quanto não passa de “jardinagem com corpos periféricos”.

A lista é longa e as transcrições de tais audiências são como vinho. A sociedade alijada ainda descobrirá, o progressista raso um dia perceberá a posição de capacho.

Nada disso é exagero. Já aconteceu. Você fica moscando, entorpecido pelo cansaço, sem saber que precisa ter energia extra para combater quem se beneficia da condição estrutural de boa parte das cidades da região, algumas das quais funcionam exclusivamente como dormitórios empobrecidos e tomados por loteamentos insalubres.

Quem encara os horários de pico nem tem ideia de que, no esgoto da política paulistana, associações fazem lobby para manter tudo como está. Não interessa se, ao fazê-lo, aumentam a pressão sobre mananciais e remanescentes da mata atlântica. É uma discussão sobre estética, herança e coesão digna de um certo regime que existiu na África do Sul.

Pena que estudamos. É realmente lamentável que aquelas universidades públicas criaram algumas pessoas capazes de reconhecer a própria condição de opressão. Alguém achou que a universidade pública era só sobre ganhar dinheiro? Num país que mal tem funcionários públicos e carreiras de estado ligadas ao planejamento das nossas cidades?

Que pena.

Agora que já tivemos contato com Milton Santos, com Acselrad e, pasme, até mesmo com autores e autoras que, vivos, trabalham contra nós, a conversa adquire outros tons.


Descentralizar: os subcentros já existem, mas falta atitude

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 4 de março. Avenida Vereador Narciso Yague Guimarães, uma das principais da região do Centro Cívico de Mogi das Cruzes, com dois hotéis visíveis à direita em segundo plano. Clique para abrir e ampliar

Falas vazias sobre "levar emprego para as periferias" são fáceis. Difícil é reconhecer e articular o que já existe.

Talvez seria melhor dizer que falta sinceridade, nem tanto atitude.

A Região Metropolitana de São Paulo abriga algumas boas surpresas, mas elas não necessariamente se traduzem numa geração equilibrada de emprego.

A região, de fato, possui tecidos mistos, que não só unem residências e escritórios, mas também abrigam estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços. Eles estão presentes em praticamente todos os vetores dos sistemas de média e alta capacidade sob responsabilidade do governo estadual.

Na fotografia acima, mesmo que não pareça, num raio de mais ou menos 1 km, temos: duas universidades privadas, bares, restaurantes, edifícios do Executivo e do Legislativo municipais, terminais urbano e rodoviário, estação, supermercado, hipermercado, padarias, shopping-referência no Alto Tietê, um pequeno parque, Poupatempo, Previdência Social...

Caminhando um pouco mais, podemos chegar a outro parque ou ao Centro Histórico e Tradicional, com a igreja matriz, o comércio popular e ruas que priorizam a circulação de pedestres.

Os imóveis são mais em conta, principalmente para quem está no topo da classe média, nível no qual a relação entre R$ gasto e m² adquirido começa a melhorar.

Trevas no horizonte E se Tarcísio de Freitas (Rep), atual governador do estado de São Paulo, conseguir avançar com o rolo compressor? E se todas as linhas do METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo) e CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) forem privatizadas? E se a privatização selar um nível de serviço degradado para toda a malha, similar aquele das linhas 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) e 9-Esmeralda (Osasco-Mendes·Vila Natal)?

Há até um arranha-céu com lajes corporativas.

Parece um paraíso, desde que você não precise trabalhar presencialmente em qualquer centralidade paulistana, a qual, mesmo apresentando problemas de zeladoria e segurança pública, provavelmente oferecerá mais empregos e chances de crescimento, além de maior diversidade e quantidade de coisas para se fazer.

Curiosamente, a defesa da descentralização não costuma vir acompanhada de um olhar sobre o que já existe. Consequentemente, se depender de certas organizações e indivíduos com maior capacidade de lobby, pouco ou nada será feito.

Existem dois tipos de descentralização: aquela que é produto de eventos e relações complexas, que levam muitas décadas (às vezes, séculos) para amadurecer; e outra, que é mero instrumento retórico.

“Precisamos descentralizar empregos” pode significar, simplesmente, “precisamos garantir que atividades que incomodam certos grupos sejam minimizadas ou interrompidas, sem que isso empobreça o pedaço”.


Quem semeia “sobradismo” estimula muito rodoviarismo

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 5 de março. Rua típica num subúrbio sonolento da Zona Leste, na região da Vila Formosa. Clique para abrir e ampliar

Sobrados podem ser pequenos e multifamiliares, mas ainda resultam num tecido difuso, com tudo longe.

Muito da discussão envolvendo o ordenamento territorial, ou seja, as leis que determinam como a cidade será construída, parte do arranjo de planejamento territorial existente, é estética e permeada por egoísmo.

É claro que o egoísmo parece mais palatável quando a família é estruturada, a educação de primeira linha, as contas bancárias sempre positivas e o teto garantido desde o berço.

Fica fácil se perder entre noções de bonito ou feio que, no fundo, não passam de um proxy para uma série de aspectos, inclusive aqueles que retratam como se vive e com quem se vive.

“Todo mundo quer poder morar numa casa, ou num bairro que tenha uma verticalização não tão grande”, assim começa a fala de Paula Santoro, uma das representantes da intelectualidade da Universidade de São Paulo (USP). A construção de prédios em vez de casas vai desconfigurar bairros, destruir quadras e, por consequência, modos de vida. O alerta é da coordenadora do LabCidade, @paulafsantoro. Em entrevista na @CBNoficial , Paula detalhou os efeitos nefastos do PL da revisão do Plano Diretor.

Façamos a provocação “do lado dos 35%”, ou seja, da Zona Leste, local da fotografia. Trata-se de um tecido da classe média remediada, que vive muito mal. O resto que não conseguiu entrar na classe média mal vive, sobrevive.

O tecido não surgiu do dia para a noite e, mantendo sua forma atual, teria um limite físico para a população residente. Deveria ser óbvio, mas parece que não é.

O tecido abriga 'n' pessoas. Para abrigar mais, é preciso empilhar. Agora, chega bem perto e nos diga: vamos empilhar na Zona Leste ou nas áreas centrais? O que faz mais sentido?

São Paulo fez uma escolha. A cidade poderia ter buscado erguer mais edifícios, com apartamentos de variados tamanhos e uma distribuição mais racional de equipamentos, mas não o fez.

Escolheu o caminho de subúrbios baseados em loteamentos heterogêneos pelo mercado (formal e informal), com resultados variados. A densidade foi baseada em precariedade: quanto mais pobres as famílias, maiores as chances de dividirem imóveis menores, com mais gente dentro e em lotes de 125 m² ou até menos.

A mancha se espalhou. Tornou-se uma só. Saindo da Luz, não há vazios substanciais até chegarmos ao município de Suzano. Considerando a fábrica de uma famosa empresa de papel e celulose, a mancha é contínua até Mogi das Cruzes (>50 km da Luz).

Em alguns casos, de fato, não fomentamos sobrados. Criamos dezenas de edifícios padronizados para populações de baixa renda que foram deixadas à própria sorte.

Introdução Em dezembro de 2023 — sim, este texto está sendo publicado depois de meses na gaveta —, trouxe alguns artigos para discussão entre membros ativos do COMMU (por meio do grupo fechado que possuímos no Telegram). Curiosamente, os artigos foram encontrados por mim acidentalmente, a partir de uma sugestão do YouTube para um vídeo. O que começou com uma severa denúncia sobre más condições de trabalho terminou com longas e dramáticas histórias sobre a crise habitacional que assola o estado de Connecticut, na metrópole tri-estadual que também envolve os estados de Nova Iorque e Nova Jérsei, na costa leste dos Estados Unidos.

Para “colar” a colcha de retalhos dos loteamentos, muito asfalto, muitas vias expressas.

Já deu. A cidade pode abrigar mais gente, mas chega de romantizar sobrado.


Espalhados, espremidos e invisíveis. Até quando?

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 6 de março. Relação de linhas de ônibus em ponto da avenida Inconfidência Mineira, em região ainda relativamente próxima do Centro Expandido, quando comparada com a vastidão da periferia que se formou na porção oriental da capital e sua região metropolitana. Clique para abrir e ampliar

As demandas do Centro Expandido precisam ser solidárias às periferias. A cidade precisa de um reequilíbrio.

As seções acima não são somente sobre as cidades da região e os transportes públicos. Elas retratam a angústia de quem, há bastante tempo, vota e não vê resultado, milita e não é ouvido, dialoga e se vê deslocado, trabalha muito e continua pastando.

A São Paulo que domina as discussões sobre meio-ambiente, mobilidade, plano diretor e habitação não é a São Paulo da maioria, mas é a São Paulo que tritura a maioria.

O ponto de ônibus que ilustra esta publicação não foi escolhido a esmo. Foi escolhido por ser simbólico. É muito representativo do contexto que permeou mais de 300 artigos neste site. E sabem o que mais dói? É suave ainda: tem coisa muito pior na região.

Ainda assim, um contexto de longas viagens a trabalho e/ou estudo, moradia de má qualidade e invisibilidade.

Um contexto no qual discussões sobre bairros ecológicos que não passam de subúrbios carrocratas, cidades de 15 minutos que mais se assemelham a condomínios sem muros para quem pode pagar, restrições construtivas que só interessam a herdeiros de vida ganha, entre outras pautas recorrentes, parecem passatempo de gente pouco ocupada e desesperada por expiar a própria culpa.

O cinismo da discussão em torno da suposta preservação ambiental da capital paulista, que estimula a urbanização difusa (chamada de urban sprawl, em inglês), muitas vezes a partir de favelas e loteamentos de origem clandestina ou irregular, produz outro efeito colateral bastante preocupante: o esgarçamento da escala local, negando São Paulo como metrópole e outros 38 municípios como integrantes de sua região metropolitana. De olho no preocupante fenômeno de associações de moradores, organizações não governamentais e indivíduos supervalorizarem a escala local, no que parece um possível efeito do fenômeno descrito por Mike Davis e citado por David Harvey com relação ao mercado imobiliário estadunidense, ou seja, um comportamento exacerbador do direito de propriedade que resulta num “microfascismo de vizinhança”, passei a olhar mais cuidadosamente para a urbanização difusa sem abandonar um olhar voltado à classe social e, sobretudo, à concentração de renda.

É simplesmente ultrajante observar como a maioria é tratada como mero insumo, como se fosse cana prestes a ser moída. Um suco bem docinho, exclusivo para quem “nasceu no lugar certo” e/ou na “família certa”.

Nessa fotografia, a São Paulo dos holofotes está a uma hora e meia de distância. Facilmente, 40 minutos ou mais serão perdidos só para vencer o oceano de sobrados e chegar num corredor de maior capacidade.

Morar perto de uma estação, afinal, é difícil. E há quem ache que precisa ser difícil para preservar a identidade, o caráter, a ambiência ou o raio que o parta. Só se esquecem de quem assenta os tijolos, assa os pães, coa o café, limpa os banheiros, carimba os papéis…

A discussão nunca deveria ser sobre “menos prédios”, mas sobre como unir acesso ao mercado imobiliário formal com boa arquitetura e urbanismo, mirando numa cidade diversa e racional.

Enquanto alguns querem menos prédios, as invisíveis periferias paulistanas se adensam com edifícios pequenos, de até 8 andares.

Dureza.


Já deu! Menos deboche, mais consciência!

Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 24 de março. Casa térrea em situação de desocupação e abandono, nas imediações do Mercado Municipal de Vila Formosa, desafiando noções rasas e imediatistas em torno do parque de imóveis ociosos da capital paulista. Clique para abrir e ampliar

O transporte não circula no vácuo! Habitação, segregação, regulação e mobilidade andam juntas.

A conversa entre nós e outras organizações azeda muito rapidamente quando a crise habitacional é colocada no centro do debate. Nem sempre é preciso um embate direto. Os sinais são vários:

  • Interromper o diálogo (por exemplo, dialogou numa determinada ação num mês e deixa de dialogar para ações de similar teor nos meses seguintes);
  • Não engajar totalmente (por exemplo, segue ou acompanha, mas só curte algo se for publicado por outra página que nos colocou como coautores);
  • Não engajar parcialmente (por exemplo, até engaja, mas só com determinados temas, como se isso não fosse prejudicial);
  • Silenciar sumariamente quando nos manifestamos (como aconteceu com um mandato do PSOL, quando assessores basicamente nos mandaram calar a boca, sendo que um deles é filho de um NIMBY);
  • Não articular (por exemplo, poderia fazer pontes e auxiliar nas pautas que qualificamos, mas não o faz por não concordar integralmente, logo, boicota todo o trabalho);
  • Não estender a mão (como permitir opressão sistemática quando basicamente nos humilhamos em espaços supostamente seguros, seja por covardia, desinteresse, boicote ou autopreservação).

E o motivo para tudo isso é bem simples: ninguém aqui está disposto a concordar com agendas do tipo “chega de prédios” ou “tem mais casa vazia do que gente sem casa”. Também simplesmente somos parte da população afetada e não estamos contentes com as possibilidades que temos hoje para morar na Região Metropolitana de São Paulo, contrariando certas “caridades”.

Talvez o motivo nem seja tão simples, na verdade, a questão é bastante complexa, mas fica insustentável quando insistimos em apelar para as técnicas que dominamos.

O tempo provou que exigir IPTU Progressivo, políticas de aluguel social com formação de estoque público, diversidade tipológica de unidades associada a cotas ou subsídios para diferentes faixas de renda e modulação do adensamento construtivo (e, potencialmente, populacional) à infraestrutura instalada implodem pontes com o progressismo aburguesado.




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