Dane-se Pinheiros e a esquerda caviar

Por Caio César | 20/04/2025 | 8 min.

Legenda: Cercanias da Estação Hebraica-Rebouças observadas a partir do estacionamento na cobertura do Shopping Eldorado. Você pode achar bonito, mas décadas de modernização da atual Linha 9-Esmeralda (Osasco-Mendes·Vila Natal) tornam questionável a existência de grandes imóveis unifamiliares numa região tão central e estratégica
Figuras como Boulos e Bonduki acenam para ricos organizados que exploram a maioria da população em relações de trabalho e consumo, perigosamente contribuindo para esvaziar o sentido da esquerda num dos maiores tecidos urbanos das Américas

Quando figuras proeminentes da esquerda brasileira, como Nabil Bonduki (PT) e Guilherme Boulos (PSOL) publicam em suas redes sociais, sempre vale avaliar não só os comentários, mas a moderação (ou a falta dela) em relação às ideias de potenciais pessoas eleitoras.

Seriam alguns comentários um termômetro de um eleitorado que demonstra ser viciado em volante e cidades pouco densas e muito segregadas? Aparentemente, sim. As tristes demonstrações são constantes e é difícil observá-las com passividade.

Numa publicação recente, bastante problemática pelo reducionismo eleitoreiro que reforça nossa trajetória despolitizante e vulnerável ao crescimento da extrema-direita, o potencial eleitorado de Boulos (ou, pelo menos, a parcela potencial mais aguerrida nas redes) seguiu revelando posições bastante contraditórias, quando não flagrantemente insustentáveis e segregacionistas.

Legenda: A preocupante obsessão com vagas de garagens, identificável em comentários nas redes sociais de Boulos e Bonduki. Parece haver conivência com o analfabetismo urbanístico

De partida, mais uma vez, alertamos estarrecidos que planejamento urbano não é sinônimo de expansionismo viário. A ideia de que o adensamento construtivo e populacional precisa ser obrigatoriamente baseado em grandes avenidas é estúpida, revelando uma postura reacionária, rodoviarista e contrária ao vanguardismo que redescobre a importância de cidades densas e repletas de transportes públicos e verdadeiros sistemas de infraestruturas de circulação.

E, sim, sabemos que Boulos já deu declarações no passado dando a entender que grandes edifícios só devem ser vizinhos a grandes avenidas, potencialmente mais barulhentas e agressivas. Lamentavelmente, ainda que tenham vindo de Boulos, declarações do tipo continuam sendo estúpidas e contraditórias, conferindo protagonismo questionável ao automóvel e inserindo, ainda que nas entrelinhas, a ideia de que a vida em grandes centros urbanos é inviável sem carros e vagas de garagem.

Não é. Os movimentos de luta por moradia nada ensinaram? As favelas nada ensinaram? Sim, há motorização preocupante, mesmo em favelas com sistema viário exíguo, contudo, o uso misto e a elevada densidade habitacional (às vezes, com edificações insalubres) se fazem presentes, ainda que o dinamismo e a potência das pessoas moradoras seja permeado por precariedade e violência. A lição é clara: podemos ter tecidos muito densos e muito dinâmicos sem avenidas de 10 faixas.

A cidade de São Paulo precisa caminhar na direção da compactação e do adensamento. O adensamento populacional salubre exige verticalizar e ampliar a densidade construtiva. Os membros mais ativos deste Coletivo são praticamente unânimes ao apontar a evolução das cercanias do sistema metroferroviário pós-2014, sobretudo aquelas no Centro Expandido, que se beneficiaram com a expansão da oferta de unidades baseada em edifícios com fachada ativa, em alguns casos, rompendo com décadas de marasmo.

Não surpreende, mais uma vez, a insistência numa agenda que mira na incorporação, mas preserva proprietários e seus privilégios, fincados num passado de superexploração e segregação étnica-racial e socioeconômica. Boulos continua a acenar para as associações de endinheirados do Centro Expandido, rifando nossos futuros em troca de um projeto de poder incerto, no qual nossa inclusão, com sorte, será baseada no modelo falido de conjuntos habitacionais longínquos e favelas e loteamentos clandestinos em eterna remediação.

Prólogo Este artigo é produto de uma série de comentários elaborados em abril de 2024, envolvendo uma verdadeira “salada” de assuntos interconectados. Seu subúrbio não é especial Sobre a privatização do trecho mais conflituoso da rodovia Raposo Tavares (entre São Paulo e Cotia), com previsão de alargamento, desapropriações e cobrança de pedágio, é preciso coragem para afirmar: quem se opõe também contribuiu para semear o projeto que se aproxima. Quando o problema estava fora dos bairros afetados pela concessão, estava tudo bem.

O voto das associações de moradores e outros movimentos de burgueses e aburguesados pode ser fácil e apetitoso, mas os desafios envolvendo as periferias seguem e seguirão extremamente indigestos. Na eleição passada à prefeitura de São Paulo, para além do crescimento de uma figura embusteira que não será nomeada, o atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), foi reeleito com caminho livre para flertar ainda mais com o bolsonarismo e a extrema-direita — e ele tem flertado.

Valeu a pena? O troco veio, mais uma vez. Seria razoável concluir que a periferia atirou nos próprios pés, elegendo Nunes e fortalecendo outra figura deplorável? Provavelmente, mas também seria razoável concluir que os tiros respingaram e acertaram nas associações e outros grupos que, vestindo um disfarce progressista ridiculamente teatral, defenderam e continuam defendendo uma cidade especulativa, violenta, racista e irracional. Uma esquerda controversa e organizada que, se valendo de privilégios históricos:

  • Vive em áreas centrais como se estivesse num subúrbio de beira de estrada, dirigindo para cima e para baixo;
  • Trata empregados como serviçais ou seres exóticos num zoológico do horror;
  • Fala de transporte público de maneira extremamente genérica, beirando o caricato, oscilando entre o desprezo explícito e o mau-caratismo justificador de posturas rodoviaristas;
  • Relativiza a produção imobiliária ao sabor dos próprios caprichos, romantizando sobrados com m² tão caro, que apenas o uso comercial ou de prestação serviços passa a ser viável;
  • Normaliza os antigos condomínios clubísticos ou de “casas suspensas” do passado, com grandes apartamentos, grandes recuos com muros verdes, praças e bosques privados.

Se dependermos de quem comentou absurdos ou apenas normalizou a publicação bem-intencionada, mas rasa e perigosa, São Paulo retomaria a verticalização elitizada do passado e estimularia ainda mais favelas e loteamentos clandestinos ou irregulares, exportando seu principal produto: miséria. Quem acha ruim uma quitinete a preços do antigo mercado imobiliário, de oferta lenta, difusa e difícil, parece demonstrar incapacidade de multiplicar o valor do m² por um imóvel com área trivialmente três a dez vezes maior, com custos condominiais a serem estimados não em reais, mas em salários mínimos.

Será que ainda não ficou claro que era muito pior e, justamente por isso, São Paulo é como é?

É extremamente cansativo acompanhar discussões que não falam dos trens, não falam dos ônibus, não consideram longos deslocamentos, demonstram predileções estéticas que parecem rebaixar a grande maioria a uma massa de trogloditas, ignoram mais de uma dezena de municípios vizinhos, revelam desconhecimento gritante das leis que regulam o uso e ocupação do solo e, em suma, insistem no combo de sempre: carro, reserva de viário, sobrados em pedestais e condomínios clubísticos nos bastidores.

Legenda: Mais demonstrações de estupidez consentida nas redes sociais de Boulos e Bonduki, com a estigmatização de quitinetes e a defesa da urbanização difusa e sem fachada ativa, banalizando ainda a expansão de infraestruturas cuja implantação é extremamente cara e demorada. Mais uma vez, bairros do Centro Expandido demarcam geograficamente a origem de opiniões sem preocupação com a concretude da vida fora de um punhado de quadras com preços exorbitantes

A esquerda emburreceu? A parcela mais endinheirada, que tem ensino superior, que empreende, que conquista cargos de maior remuneração no setor público, que tem maior capacidade de ler livros e viajar para fora do país, entre outras possibilidades, não consegue utilizar um computador e entender a monstruosidade da mancha urbana no espaço?

Se não for burrice, fica uma abjeta defesa de privilégios. Isto é, racismo e xenofobia nas entrelinhas. Sim, racismo e xenofobia, pois o que importa é ter mão de obra barata para assar pães, coar cafés e esfregar pisos, uma mão de obra que aparece e desaparece de maneira mágica, chegando e sumindo dentro de ônibus e trens apinhados que serpenteiam até as rebarbas da cidade, despejando massas populacionais inteiras no precipício infernal da cidade real. O resto é expiação de culpa com teatrinho e frase feita, atacando um capitalista imaginário num anticapitalismo rasteiro e infantil.

Boulos, ou você se comporta como alguém que assentará a maioria da população numa nova São Paulo, densa e racional, na qual seus patrocinadores e fiadores do Centro Expandido serão meramente nossos vizinhos, sem qualquer diferenciação, ou é melhor pendurar as chuteiras e parar com o “cospobre” a bordo de um Celta no Campo Limpo. Passar por um movimento de luta por moradia para terminar dizendo que “Pinheiros pede socorro”, francamente, é uma das agressões mais violentas que poderíamos sofrer politicamente.

Similarmente, desenvolver uma longa trajetória ligada à produção habitacional, inclusive ocupando cargos relevantes, não deveria conferir a Nabil Bonduki tranquilidade de consciência para afirmar que um edifício no Tatuapé é um “ícone da degradação urbana”. A mim, é impossível supor que o professor não saiba que a vida em favelas e loteamentos clandestinos, visíveis em parcelas substanciais da capital e das dezenas de municípios ao redor, não só esteja muito mais próxima de uma degradação emblemática, como também seja um subproduto da cidade defendida pelas associações que o apoiam.

Como é difícil ser de esquerda neste país! Eu só queria alguém que defendesse o básico: cidades humanas com comida no prato, teto e transporte público. Dane-se Pinheiros e sua alergia a prédios que já deveriam existir desde 1981, pelo menos, quando um lambedor de botas da ditadura (outro cujo nome não maculará este texto) entregou a nova estação da Fepasa (Ferrovia Paulista Sociedade Anônima) da então Linha Sul (atual Linha 9-Esmeralda).

Legenda: Registro da placa de inauguração da então novíssima Estação Pinheiros, outro marco do Trem Metropolitano, então, um novo conceito em transporte em execução pela Fepasa. Clique na imagem para abri-la e ampliá-la

O mesmo sujeito que depois encaminhou (e conseguiu aprovar) uma operação urbana ridícula, que nos legou uma tripa de prédios corporativos com imensos subsolos de garagens em meio a uma vizinhança de casas e mansões, assunto que pode ficar para outra oportunidade.




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